Ontem dormi durante o dia, o que é garantia de insônia
à noite. À noite, o sono teimava em não vir, enquanto eu ia lendo trechos avulsos
de Deleuze, até não poder mais. A dada altura, comecei a ouvir uma espécie de grito intermitente,
desconfortável. Havia acabado de ler um trecho sobre o homem que sonha com
lobos, em “Cinco proposições sobre a psicanálise”: “(...) quando o Homem dos
lobos sonha com seis ou sete lobos, o que é por definição uma matilha, a saber,
um certo tipo de grupo, Freud só pensa em reduzir esta multiplicidade, em
reconduzir tudo a um só lobo, que será forçosamente o pai.” Qualquer que seja a
riqueza sugestiva do trecho e suas implicações interpretativas, o fato é que a
própria contiguidade de tudo deu-me os lobos: os gritos intermitentes que ia
ouvindo, no limite do estridente, vinham da rua: tratava-se de um grupo que
voltava, vindo muito lentamente e em passos errantes, e um deles gritava a
intervalos curtos. Por que o fazia? A quem queriam atingir, aqueles gritos? Ou
não queriam nada, apenas eco do insuportável silêncio da madrugada vazia? Nunca
poderei saber. Insone ou não, a madrugada é um campo em que lobos correm
uivando violentamente. Voltando a dormir, sonhei com outra espécie de lobos, mais
familiares e perigosos.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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