Ao percorrer um livro de crônicas, que
adquiri com o fito de escolher a leitura dos alunos para o próximo ano letivo,
encontrei um texto de memória antiga, de Cecília Meireles. Achava
inclusive que o título era “As minhas janelas”, e de forma alguma ligava-o ao nome de Cecília. Atribuía-o vagamente à Lygia Fagundes Teles. No horizonte,
de todo modo, o feminino.
A crônica é singela,
e se ficou guardada esses anos todos é porque alguma coisa da escola está muito
viva dentro de mim. Esse texto ficou. Ontem, quase três décadas depois, eu
reencontrei-o, com o espantoso título de “A arte de ser feliz”.
E então, à medida que
ia lendo, e reconhecendo, senti a comoção do reencontro com quem fui. Quem fui acreditou nesse texto,
acreditou que era assim, simples, bastava trazer em si um pouco de pureza e
honestidade. Bastava. Inclusive para acreditar. Tudo contribuía para que o
texto, em sua delicada singeleza, afastasse qualquer possibilidade de ironia.
Sobretudo, descobri
ao reencontrá-lo que o que se inseriu entre o hoje e esse texto, entre quem sou
e quem fui, foi a violência. Não sei se esse texto resiste a ela. Mas é bom
poder tê-lo lido num tempo de inocência, que possibilitou acreditar nele. É bom
ter vivido esse tempo de inocência.
A arte de ser feliz
Cecília Meireles
Houve um tempo em que a minha
janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de
louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos,
quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no
ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente
feliz.
Houve um tempo em que a minha
janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de
flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que
sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham
criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais
criança, porém a minha alma ficava completamente feliz.
Houve um tempo em que minha
janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa
redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma
mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não podia ouvir da altura
da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito
longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, às
vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do
auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente
feliz.
Houve um tempo em que a minha
janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela
havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e
o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e,
em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era
uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E
eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de
seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro
o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças
que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem
e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas,
como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem
personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um
avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu
me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas
felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas
coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e
outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las
assim.
Boa companhia: crônica. Org. Humberto Werneck. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.175-176.
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