MENINA
“Oh, ela sabia cada vez mais.”
(Clarice Lispector)
Sentar-se, concentrada, contar até um número, por
exemplo dez, ou doze, e esperar agudamente um acontecimento importante, era seu
exercício mais impreciso, mais despido de maldade, porque ela não escolhia o
que ia acontecer, só fazia acontecer.
Havia outros, menos intensos: gritar “aaaa” de
olhos fechados e, abrindo-os, esperar que tudo houvesse desaparecido; colocar a
mão molhada na testa e acompanhar aquele sangue mais frio passeando no seu
corpo; imóvel e muda, obrigar a fruteira de cristal brilhante a estilhaçar-se
no chão com a força do pensamento; passar sem comer um dia inteiro para
preocupar a mãe e ouvir deliciada: “Ana Lúcia, você me mata!”
Entretanto, era o esperar que algo importante
acontecesse quando contasse até doze ou dez que lhe dava aquele segundo de vida
intenso do qual ela saía sempre um pouco mais velha, e apressava a sua
respiração, como um cansaço ou um beijo de Guilherme em Nilsa. Horas depois, ou
nos dias seguintes, quando ouvia as pessoas grandes conversarem segredos ou comentarem
graves um fato recente, dizia-se, plena de poder, ela mesma perplexa ante suas
possibilidades: “Fui eu. Fui eu que fiz.”
Achava péssimo ir à escola, a professora era
horrível. As coisas de que mais gostava: pensar sem ninguém perto porque aí podia
ir avançando até se perder, brincar de santa, dormir, comer doce. Bom mesmo era
fazer nada, nem pensar, mas isso só às vezes conseguia, e era impossível gozar
o momento, sempre passado. Pois quando o sentia, ele já acabara: ela começara a
pensar. Ter aquilo na mesma hora seria morrer? ― perturbava-se ela com o
pensamento, cada vez sabendo mais.
Sim, cada vez sabendo
mais. Sempre sentira esse mistério: não ter pai. Ela, que podia tanta coisa,
afinava-se embaraçada de não conseguir dizer “papai” do modo de Tita ou Nina.
Era a única coisa que faziam melhor do que ela, dizer “papai”. A diferença
talvez só ela percebesse, sutil. Sentia que pai era uma coisa que se tem
sempre, como mãe, ou roupas. Tita e Nina sabiam que aquela era uma vantagem:
― Quede seu pai, Ana
Lúcia?
― Está viajando.
Disseram-lhe isso, já
tinha escutado ou inventara? Ah, cada vez sabia mais, sempre mais.
Guilherme e Nilsa não se beijavam perto da mãe.
Se ela chegava, as mãos ficavam quietas nas mãos, a respiração ficava mansinha
e não havia mais nada interessante para olhar da janela do quarto. Beijar devia
ser proibido. Ou pecado. (Sabia mais, sempre mais).
― Ana Lúcia, seu pai
ainda está viajando?
― Está.
― Mentirosa! Sua mãe é
desquitada.
Ficou impotente diante
da palavra desconhecida. Uma coisa nova, ainda não se podia saber de que lado
olhar para possuí-la toda. Desquitada. Desquitada. Jamais perguntaria a Tita,
era uma alegria que não lhe daria. Ficou uns instantes sem saber como sair
ilesa dessa armadilha. Tita corada e brilhante de prazer na sua frente.
― E o que é que tem
isso?
Tita desmontou como um
quebra-cabeça, Ana Lúcia balançara o tabuleiro. Jamais teria medo de Tita, ela
sempre dependia demais das coisas fora dela, de um gesto, de uma palavra como
desquitada ou parto.
Desquitada. Passou dias
tentando solucionar sozinha. Seria uma coisa como burra, feia? Não, não
parecia. Flor? Flor parecia, mas não explicava nada: orquídeas, rosas,
sempre-vivas, desquitadas… Parecia. “Mentirosa! Sua mãe é desquitada.” Tita
dissera como quem diz o quê? o quê? o quê? ― sem-vergonha. Sim!, como quem diz
sem-vergonha: olhando de frente e esperando um tapa.
Nesses dias amou a mãe
com muita força, amou-a até sentir lágrimas, defendendo-a contra a palavra que
poderia feri-la: desquitada, sem-vergonha. Pensava a palavra de leve, com
receio de ferir a mãe. Experimentava baixinho torná-la mais suave, molhando-a
de lágrimas e amor: desquitadinha, sem-vergonhinha. Mas a palavra sempre
agredia, sempre feria.
Sentada no chão, picando retalhinhos de pano com
a tesoura, amava a mãe intensamente, enquanto ela costurava rápida, bonita
mesmo, com aqueles alfinetes na boca. Chegava alguém para provar vestidos, a
mãe mandava-a sair. Era feio ver gente grande mudar de roupa, a mãe dizia. Saía
contrariada por deixá-la exposta à palavra, em perigo. Abria-se a porta, ela
entrava de novo, amando, amando.
Estava cansada dessa
obrigação e só por isso duvidou de si, subitamente um dia ao tomar leite para
dormir: desquitada podia não ser como sem-vergonha! Podia até ser pior, e quem
sabe podia ser melhor. Respirando fundo e observando-se, ela seguia pronta para
novas descobertas. Refugiou-se no sono.
No dia seguinte recomeçou.
Mais uma vez preocupava-se com a palavra, agora não nova, mas mistério, sombra.
Não se arriscava a dar um palpite, havia o perigo de outro engano.
A professora feia! pergunta no fim da manhã,
recolhendo os cadernos, se alguém tem alguma dúvida. Ana Lúcia acende-se
emocionada. Por que não a professora? Talvez ela fosse boa, talvez dissesse
logo o que é desquitada, talvez dissesse na mesma hora, sem muitas perguntas
como por que você quer saber uma coisa dessas. Levanta-se tímida, insegura. Já
de pé, desiste, e não sabe se senta ou chora.
― O que é, Ana Lúcia?
A voz da professora, mansa, mas não ajudando. Não
pergunto, não pergunto ― teima Ana Lúcia, ganhando tempo.
― O que é? ― a voz insiste.
As meninas riem, insuportáveis. Helenice e seus
dentes enormes impossibilitando tudo. Ana Lúcia sente que vai chorar. Estar
perto da mãe é o que mais deseja.
― Sente-se ― ordena a professora irritada.
A máquina de costura
avançava decidida sobre o pano. Que bonita que a mãe era, com os alfinetes na
boca. Gostava de olhá-la calada, estudando seus gestos, enquanto recortava
retalhos de pano com a tesoura.
Interrompia às vezes
seu trabalho, era quando a mãe precisava da tesoura. Admirava o jeito decidido
da mãe ao cortar pano, não hesitava nunca, nem errava. A mãe sabia tanto! Tita
chamava-a de ( ) como quem diz ( ). Tentava não pensar as palavras, mas sabia
que na mesma hora da tentativa tinha-as pensado. Oh, tudo era tão difícil. A
mãe saberia o que ela queria perguntar-lhe intensamente agora quase com fome,
depressa, depressa antes de morrer, tanto que não se conteve e
― Mamãe, o que é
desquitada? ― atirou rápida com uma voz sem timbre.
Tudo ficou suspenso, se
alguém gritasse o mundo acabava ou Deus aparecia ― sentia Ana Lúcia. Era muito
forte aquele instante, forte demais para uma menina, a mãe parada com a tesoura
no ar, tudo sem solução podendo desabar a qualquer pensamento, a máquina
avançando desgovernada sobre o vestido de seda brilhante espalhando luz luz
luz.
A mãe reconstruiu o
mundo com uma voz maravilhosa e um riso:
― Eu precisava mesmo
explicar para você a situação. Mas você é tão pequena!
Olhou a filha com
carinho, procurando o jeito mais hábil. Pouco mais de sete anos, o que poderia
entrar naquela cabecinha?
― Desquitada é quando o
marido vai embora e a mãe fica cuidando dos filhos.
Pronto, estou livre ―
sentiu Ana Lúcia. Desquitada, desquitada, desquitada ― repetia sem medo.
Sentia-se completa e nova. Alegrou-se por não precisar amar a mãe com aquela
força de antes. Sendo apenas uma menina poderia cansar-se e então o que seria
da mãe? Bom, que desquitada não fosse um insulto. Bom mesmo. Deixava-a livre
para pensar e não pensar, coisa tão difícil que
― Marido é o pai? ― ela
quis confirmar, conquistando áreas que as outras crianças tinham naturalmente.
A mãe sorriu e confirmou.
Tita sabia dizer
“papai” porque a mãe não era desquitada ― ia Ana Lúcia aprendendo, descobrindo.
Havia muita coisa em que pensar naquela conversa. Por exemplo: o que ela chama
de marido é o que eu chamo de pai. Essa é uma diferença entre mãe e filha.
Ela sabia cada vez
mais.
Para gostar de ler, vol.10 (contos brasileiros
3). 18.ed.
São Paulo: Ática, 2010, p.41-45.
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