Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 2 de janeiro de 2011

oceano da praia do meu desejo (de um verso de Manuel Bandeira)

O dia de ontem, todos sabem, foi aclamado como histórico no Brasil: pela primeira vez, depois de inaugurada a República (cuja condução, ao longo de seu século e pouco, teve mais de latino-americano que de americano ― somos americanos, apesar de tudo, por pertencimento a um continente batizado de América, situado entre os oceanos Pacífico e Atlântico), uma mulher foi empossada como presidente após ter sido escolhida por maioria nas urnas. Era feriado, 1º de janeiro, Dia da Confraternização Mundial. Um dia em tese de descanso, a perder de vista, apesar das diferenças de fuso horário. Por aqui, o descanso foi mesmo só em tese ― teses por terminar não costumam dar descanso. E eu me perguntava, lá pelas tantas, com a cabeça esgotada, que obstinação é essa que não deixa uma pessoa largar o serviço mesmo num dia em que poderia, em tese, fazê-lo. Muitas outras pessoas trabalharam ontem, há categorias profissionais e serviços que não podem parar. E aí já tenho a resposta, que me traz junto um sentimento curioso de solidariedade. Mas uma estranha calma me vem ao me dar conta da privilegiada localização geográfica do meu continente: entre o Atlântico e o Pacífico. O primeiro eu posso conferir a hora que quiser. O segundo está aqui, incorporado como fuso horário e algo mais deste espaço, para que eu não me esqueça, nunca, de duas coisas, pelo menos: meu absurdo desejo de paz, paz íntima, pessoal, que de forma alguma se confunde com ausência de conflitos; a relatividade de quase tudo nesse mundo (pois há algo de tirânico no que é absoluto, e tiranias dão pouco espaço ao que é relativo). Vejo o Atlântico, imagino o Pacífico: oceanos da praia do meu desejo. Se há uma coisa que devo a esta tese e a Sérgio Buarque de Holanda, do muito que aprendi e tenho por aprender, foi a conquista da poesia, América esquiva até então às minhas investidas de leitura, poesia de que Sérgio Buarque foi leitor privilegiadíssimo, um dos melhores que esse país já teve, sem dúvida, e um dos mais atentos e cuidadosos da poesia de Manuel Bandeira, desde a primeira hora modernista.

Oceano

Olho a praia. A treva é densa.
Ulula o mar, que não vejo,
Naquela voz sem consolo,
Naquela tristeza imensa
Que há na voz do meu desejo.

E nesse tom sem consolo
Ouço a voz do meu destino:
Má sina que desconheço,
Vem vindo desde eu menino,
Cresce quanto em anos cresço.

Voz de oceano que não vejo
Da praia do meu desejo...

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 64-65. 

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