O dia de ontem, todos sabem, foi aclamado como histórico no Brasil: pela primeira vez, depois de inaugurada a República (cuja condução, ao longo de seu século e pouco, teve mais de latino-americano que de americano ― somos americanos, apesar de tudo, por pertencimento a um continente batizado de América, situado entre os oceanos Pacífico e Atlântico), uma mulher foi empossada como presidente após ter sido escolhida por maioria nas urnas. Era feriado, 1º de janeiro, Dia da Confraternização Mundial. Um dia em tese de descanso, a perder de vista, apesar das diferenças de fuso horário. Por aqui, o descanso foi mesmo só em tese ― teses por terminar não costumam dar descanso. E eu me perguntava, lá pelas tantas, com a cabeça esgotada, que obstinação é essa que não deixa uma pessoa largar o serviço mesmo num dia em que poderia, em tese, fazê-lo. Muitas outras pessoas trabalharam ontem, há categorias profissionais e serviços que não podem parar. E aí já tenho a resposta, que me traz junto um sentimento curioso de solidariedade. Mas uma estranha calma me vem ao me dar conta da privilegiada localização geográfica do meu continente: entre o Atlântico e o Pacífico. O primeiro eu posso conferir a hora que quiser. O segundo está aqui, incorporado como fuso horário e algo mais deste espaço, para que eu não me esqueça, nunca, de duas coisas, pelo menos: meu absurdo desejo de paz, paz íntima, pessoal, que de forma alguma se confunde com ausência de conflitos; a relatividade de quase tudo nesse mundo (pois há algo de tirânico no que é absoluto, e tiranias dão pouco espaço ao que é relativo). Vejo o Atlântico, imagino o Pacífico: oceanos da praia do meu desejo. Se há uma coisa que devo a esta tese e a Sérgio Buarque de Holanda, do muito que aprendi e tenho por aprender, foi a conquista da poesia, América esquiva até então às minhas investidas de leitura, poesia de que Sérgio Buarque foi leitor privilegiadíssimo, um dos melhores que esse país já teve, sem dúvida, e um dos mais atentos e cuidadosos da poesia de Manuel Bandeira, desde a primeira hora modernista.
Oceano
Olho a praia. A treva é densa.
Ulula o mar, que não vejo,
Naquela voz sem consolo,
Naquela tristeza imensa
Que há na voz do meu desejo.
E nesse tom sem consolo
Ouço a voz do meu destino:
Má sina que desconheço,
Vem vindo desde eu menino,
Cresce quanto em anos cresço.
― Voz de oceano que não vejo
Da praia do meu desejo...
Ulula o mar, que não vejo,
Naquela voz sem consolo,
Naquela tristeza imensa
Que há na voz do meu desejo.
E nesse tom sem consolo
Ouço a voz do meu destino:
Má sina que desconheço,
Vem vindo desde eu menino,
Cresce quanto em anos cresço.
― Voz de oceano que não vejo
Da praia do meu desejo...
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 64-65.
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