Após passar por aqui e por João Cabral de Melo Neto, saiu-me isto, sem qualquer presunção:
Os pés descalços da infância rural traem sensações confusas: a terra foi pisada com liberdade, da poeira à lama da chuva. Mas os coercitivos sapatos da civilização impuseram uma espécie de corte com essa memória que, hoje percebo, era uma força. Durante certo tempo tive um sonho recorrente: me apanhava em público descalça, sem sapatos, e era uma situação vexatória. Não é difícil ver nesses sonhos a ronda dos fantasmas da pobreza, que aparentemente deixaram um pouco de importunar, ou cederam vez a outros. Como fantasma bom é fantasma morto, preferia aqueles, pois pelo menos podia reconhecer neles minha inocência: ninguém tem culpa de ter nascido pobre. Já continuar pobre lembra alguma espécie de condenação. Os fantasmas de hoje sofisticaram, receberam o selo da cultura: são fantasmas que frequentam o divã, mais embrulhados. A inocência com que tentei prolongar minha infância... ou esse movimento já era consciência da inocência indo embora? Havia na infância alguma coisa de bom que me fez tentar prolongá-la, retardando os passos seguintes. Alguma coisa que traduziria como gostar de lápis de cor, estojos coloridos e caderno novo. É a explicação que encontro para possuir poucos sapatos.
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