Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 19 de abril de 2011

infância

Após passar por aqui e por João Cabral de Melo Neto, saiu-me isto, sem qualquer presunção: 

Os pés descalços da infância rural traem sensações confusas: a terra foi pisada com liberdade, da poeira à lama da chuva. Mas os coercitivos sapatos da civilização impuseram uma espécie de corte com essa memória que, hoje percebo, era uma força. Durante certo tempo tive um sonho recorrente: me apanhava em público descalça, sem sapatos, e era uma situação vexatória. Não é difícil ver nesses sonhos a ronda dos fantasmas da pobreza, que aparentemente deixaram um pouco de importunar, ou cederam vez a outros. Como fantasma bom é fantasma morto, preferia aqueles, pois pelo menos podia reconhecer neles minha inocência: ninguém tem culpa de ter nascido pobre. Já continuar pobre lembra alguma espécie de condenação. Os fantasmas de hoje sofisticaram, receberam o selo da cultura: são fantasmas que frequentam o divã, mais embrulhados. A inocência com que tentei prolongar minha infância... ou esse movimento já era consciência da inocência indo embora? Havia na infância alguma coisa de bom que me fez tentar prolongá-la, retardando os passos seguintes. Alguma coisa que traduziria como gostar de lápis de cor, estojos coloridos e caderno novo. É a explicação que encontro para possuir poucos sapatos. 

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