Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 28 de julho de 2011

Rainer Maria Rilke

A ILHA

I
A maré cobrirá estrada e areia
e tudo há de ficar equivalente,
mas a pequena ilha, indiferente,
fecha os olhos; um dique, além, rodeia

seus habitantes; o sono que os gera
em muitos mundos confundiu a espera
calada: sua fala é muito rara;
cada sentença é um epitáfio para

algo que o mar lavou na praia, alheio,
que chega e fica sem explicação.
E assim é tudo o que lhes cai no olhar,

desde a infância: são coisas de outro meio,
grandes demais, sem uso, sem lugar,
que só aumentam sua solidão.

II
Como numa cratera circular
de lua: as fazendas, cada qual
cercada por um dique, par a par;
como órfãos, penteadas por igual

pelo tufão que as trata com dureza
e mostra-lhes a morte todo dia.
Então, alguém senta-se em casa e espia
Em espelhos oblíquos o que à mesa,

raro, restou. Um jovem da família
abre a porta, ao crepúsculo, e dedilha
o harmônio, como um choro, suavemente;

ele ouvira a canção num porto estranho ―.
Lá fora, sobre o dique, do rebanho
das nuvens, uma infla-se, iminente.

III
Só o que é interno é perto; o mais, distante.
E esse interno é tão denso e a cada instante
mais denso ainda. Impossível descrevê-la.
A ilha é como uma pequena estrela

que o espaço esqueceu e, muda, so-
me em seu inconsciente horror de astro,
de modo que, sem luz, sem deixar rastro,

como ainda a buscar metas extremas,
obscura, em sua auto-inventada via,
prossegue, em rumo cego, à revelia
dos planetas, dos sóis e dos sistemas.

RILKE, Rainer Maria. Coisas e anjos de Rilke. Tradução Augusto de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.82-87.

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