Como hoje é dia de rock de novo, precisava escolher bem o trajeto para voltar para casa. Certo frisson no Centro anunciava complicações. Pensei numa forma, mas não funcionou ― já considerando descartada, por impraticável, a primeira opção. Na avenida principal fui para a fila do seletivo. Foi então que comecei, sem perceber, a ouvir a conversa no celular próximo. Um senhor fazendo aniversário de 59 anos recebeu uma ligação, o que entendi logo. O que não entendi era certo jeito embargado dele de falar, como demorando a anunciar alguma coisa. Até que ― e o fiscal já tinha dito que o ônibus ia demorar porque os melhores veículos foram liberados para o evento ―, até que ele disse com todas as letras para o interlocutor, seu irmão: "Perdi tudo, cara. Perdi tudo." Repetiu isso, algumas vezes. Fiquei imaginando o que ele poderia ter perdido, que tudo era aquele, e o que era perder tudo chegando perto dos 60 anos de idade. O homem parecia não se importar que os outros escutassem sua conversa, e mesmo pareceu-me que ninguém estava prestando atenção, tal o modo com que a promessa de ir para casa o quanto antes apaziguava a sensação de caos de mais um dia. “Perdi tudo”. Fui para outro ponto, tentar um ônibus vazio. Que viver é risco todo mundo sabe. Mas aquele homem era todo desamparo. Quando se escuta uma coisa assim o instinto de sobrevivência acorda. Estará alguém protegido? Iuri Gagárin foi o homem misterioso que inaugurou uma nova forma de viajar. Não obstante sua imensa coragem (ou quem sabe inocência), morreu misteriosamente sete anos depois num treinamento de rotina.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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