Um trecho, dos mais líricos e sutis de Rayuela ― impossível não rir ironicamente do destino, quando se jogou amarelinha na infância, sem saber nada além de um mundo chamado infância:
“O jogo da amarelinha se joga com uma pequena pedra que é preciso empurrar com a ponta do sapato. Ingredientes: uma calçada, uma pedrinha, um sapato e um belo desenho feito com giz, preferivelmente colorido. No alto, fica o Céu, embaixo a Terra, é muito difícil chegar com a pedrinha ao Céu, quase sempre se calcula mal e a pedra sai do desenho. Pouco a pouco, porém, vai-se adquirindo a habilidade necessária para salvar as diferentes casinhas (caracol, retângulo, fantasia, esta pouco usada) e um dia se aprende a sair da Terra e levar a pedrinha até o Céu, até entrar no Céu (Et tous nos amours, soluçou Emmanuelle de bruços); o pior é que, justamente nesse momento, quando quase ninguém ainda aprendeu a levar a pedra até o Céu, a infância acaba de repente e se chega aos romances, à angústia do divino foguete, à especulação de outro Céu ao qual também é necessário aprender a chegar. E, por se ter saído da infância (Je n’oublierai pás les temps des cérises, cantarolou Emmanuelle, estendida no chão), esquece-se de que, para alcançar o Céu, é preciso ter, como ingredientes, uma pedrinha e a ponta de um sapato.”
CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.253-254.
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