Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2016
2016
2016 não para de matar gente bacana e nos lembrar constantemente da
existência de homens sórdidos.
sexta-feira, 18 de novembro de 2016
distopia
A série Black Mirror mexeu mais comigo que a própria tecnologia que ela encena e questiona.
A distopia é o destino ingrato em direção à Singularidade. Não sou mais a mesma
depois de assistir a duas temporadas.
quinta-feira, 10 de novembro de 2016
#ocupatudo: isso é política sim, Geraldo!
Das muitas coisas acontecendo: a escola em que trabalho como docente está OCUPADA.
quinta-feira, 13 de outubro de 2016
domingo, 25 de setembro de 2016
quarta-feira, 14 de setembro de 2016
ameaças do (e ao) subterrâneo - bernardo mello franco
"Vou contar
tudo o que aconteceu no impeachment, com todos os personagens que participaram
de diálogos comigo. Esses serão tornados públicos em toda a sua integralidade.
Todos, todos, todos. Todo mundo que conversou comigo", prometeu o agora ex-deputado.
Questionado se havia gravado as conversas, ele respondeu com um sorriso
irônico: "Tenho boa memória".
Desde os tempos da
Telerj, no governo Collor, Cunha cultiva a reputação de fabricar dossiês contra
adversários. A diferença é que ele não pode mais usá-los para acumular poder ou
ampliar os negócios. Agora as informações do subterrâneo da política se tornaram
a sua última arma para tentar escapar da cadeia.
http://folha.com/no1813104
terça-feira, 13 de setembro de 2016
terça-feira, 30 de agosto de 2016
domingo, 28 de agosto de 2016
sexta-feira, 19 de agosto de 2016
Brasil: o que dizer?
SIGLAS
Luis Fernando Verissimo
― Bota aí: “P”
― “P”? ― De “Partido”. ― Ah. ― Nossa proposta qual é? De união, certo? Acho que a palavra “União” deve constar o nome. ― Certo. Partido de União... ― Mobilizadora! ― Boa! Dá a ideia de ação, de congraçamento dinâmico. Partido da União Mobilizadora. Como é que fica a sigla? ― PUM. ― Não sei não... ― É. Vamos tentar outro. Deixa ver. “P”... ― “P” é tranquilo. ― Acho que “Social” tem que constar. ― Claro. Partido Social... ― Trabalhista? ― Fica PST. Não dá. ― É. Iam acabar nos chamando de “Ei, você”. ― E mesmo “trabalhista”, não sei. Alguém aqui é trabalhista? ― Isso é o de menos. Vamos ver. “P”... ― Quem sabe a gente esquece o “P”? ― É. O “P” atrapalha. Bota “A”, de Aliança. Aliança Inovadora... ― AI. ― Que foi? ― Não. A sigla. Fica AI. ― Espera. Eu ainda não terminei. Aliança Inovadora... de Arregimentação Institucional. ― AIAI... Sei não. ― É. Pode ser mal interpretado. ― Vanguarda Conservadora? ― Você enlouqueceu? Fica VC. ― Aliança Republicana de Renovação do Estado. ― ARRE! ― O quê? ― Calma. |
― Espera aí, pessoal. Quem sabe a gente define a
posição ideológica do partido antes de pensar na sigla? Qual é, exatamente, a
nossa posição?
― Bom, eu diria que estamos entre a centro-esquerda e a centro-direita. ― Então é no centro. ― Também não vamos ser radicais... ― Nós somos a favor da reforma agrária? ― Somos, desde que não toquem na terra. ― Aceitaremos qualquer coalizão partidária para impedir a propagação do comunismo no Brasil. ― Inclusive com o PCB e o PC do B? ― Claro. ― Não devemos ter medo de acordos e alianças. Afinal, um partido faz pactos políticos por uma razão mais alta. ― Exato. A de chegar ao poder e esquecer os pactos que fez. ― Partido Ecumênico Republicano Unido. ― PERU? ― Movimento Institucionalista Alerta e Unido. ― MIAU? ― Que tal KIM? ― O que significa? ― Nada, eu só acho o nome bonito. ― MUMU. Movimento Ufanista Mobilização e União. ― MMM... Movimento Moderador Monarquista. ― Mas nós somos republicanos. ― Eu sei. Mas por uma boa sigla a gente muda. ― TCHAU. ― Hum, boa. Trabalho e Capital em Harmonia com Amor e União? ― Não, é tchau mesmo. ― Aonde é que você vai? ― Abrir uma dissidência. |
quinta-feira, 18 de agosto de 2016
sexta-feira, 12 de agosto de 2016
ativismo
Por questões políticas da máxima
urgência, abri uma conta no twitter. A atividade aqui caiu sensivelmente.
segunda-feira, 1 de agosto de 2016
já estamos vivendo em um estado de exceção
Chocaram aos poucos, e irresponsavelmente, o OVO FASCISTA. Os efeitos mais visíveis e imediatos são apenas prenúncio de tempos bem piores.
terça-feira, 26 de julho de 2016
quinta-feira, 14 de julho de 2016
quarta-feira, 13 de julho de 2016
o walking dead eduardo cunha
"Qual o risco
dessa armação? Sim, ele mesmo. O walking dead Eduardo Cunha, sem apoio do novo presidente da Câmara,
verá irem por água abaixo seus planos de adiar sua cassação e pode resolver
explodir o quarteirão com todo mundo dentro, inclusive Temer." (do blog "o cafezinho")
Será que Eduardo
Cunha, com todo o espírito de corpo, digo, porco, digo, raposa, de que dispõe,
não previu que seria rifado? Não previu que, em terra de traidores, quem trai
por último, trai melhor? Cunha é aquele vilão excessivamente perverso contra o
qual uma hora as forças acabam se voltando. Ninguém domina um contexto por
muito tempo apenas com o uso do cérebro (no caso, um cérebro doentio).
domingo, 10 de julho de 2016
saturday night suburbano
Loucos passam acelerando e fazendo roncar suas motocicletas na rua em que moro, em
plena luz do dia. Eu gostaria de poder entendê-los, dentro dessa
dimensão ampla do que se chama “compreensão”, que inclui a bondade em relação
ao próximo. Mas não consigo. Então os chamo de “loucos”, modo preconceituoso de
nomear (no caso, um falso elogio) o que não se conhece. Não suporto barulho acima de
certo grau. E minha vizinhança vem se excedendo no barulho: as festas caretas
do saturday night suburbano,
incluindo aquelas voltadas para crianças, de estourar os tímpanos; o mais
novo bar-boteco da esquina, com um karaokê ofensivo aos ouvidos. Barulho acima
de certo grau ― cada uma sabe o seu ―, em áreas residenciais, é falta de educação.
segunda-feira, 4 de julho de 2016
de minha articulista preferida na atualidade
Há tanta informação
disponível, mas talvez estejamos nos imbecilizando. Porque nos falta
contemplação, nos falta o vazio que impele à criação, nos falta silêncios. Nos
falta até o tédio.” (daqui)
domingo, 3 de julho de 2016
quinta-feira, 30 de junho de 2016
Armando Freitas Filho, na abertura da FLIP:
"A minha poesia, eu a entendo como a que toca todas as coisas,
inclusive as mais monstruosas. Que pode tocar um Temer, por exemplo",
declarou.
segunda-feira, 27 de junho de 2016
quarta-feira, 22 de junho de 2016
domingo, 19 de junho de 2016
sábado, 18 de junho de 2016
democracia
“Democracia é ninguém ser
tão rico que possa comprar alguém e ninguém ser tão pobre que tenha que se
vender a alguém.” Márcio Porchmann (via twitter)
cidadão decreta estado de calamidade para não pagar suas contas - o sensacionalista
Em resposta ao decreto emitido pelo
governador interino do Rio de Janeiro, Francisco Dornelles, onde ele coloca o
Rio de Janeiro em estado de calamidade pública, um cidadão acaba de decretar
estado de calamidade privada e assume que não poderá honrar com seus
compromissos e pagar suas contas e dívidas. O cidadão, que não quis se
identificar, comunicou aos bancos e aos prestadores de serviço que não tem
dinheiro para pagar as despesas do mês e que está aguardando um aporte
financeiro do governo para poder honrar suas dívidas. Outros cidadãos estão
seguindo o exemplo e também estão decretando estado de calamidade privada, e
aguardam também um jantar com Temer para resolverem suas vidas. (daqui)
terça-feira, 14 de junho de 2016
domingo, 12 de junho de 2016
sábado, 4 de junho de 2016
segunda-feira, 30 de maio de 2016
um motivo para se alegrar
A
obra de Raduan Nassar é distinguida com o prêmio Camões 2016 (um conto dele aqui).
sexta-feira, 27 de maio de 2016
ministério da cultura do estupro (joão paulo cuenca)
No dia em que
virou notícia o caso de uma menor de idade dopada e estuprada por 30 homens,
crime exposto em vídeo com risadas e piadas na internet, foi recebido pelo
ministro Golpista da Educação e pelo ministro Biônico da Cultura um ator conhecido, entre outras coisas, por ter
confessado o estupro de uma mãe de santo na TV – depois disse que aquilo era
parte do seu show de stand up, apenas uma piada. Kkkkk.
Ficcional ou
não, o relato de estupro foi recebido com aplausos e gargalhadas no programa do
mesmo comediante que comentou a gravidez de uma cantora dizendo que
"comeria ela e o bebê". O apresentador também disse, num show de
stand up, que mulher feia deveria ver estupro como "oportunidade" e
não "crime": "Homem que fez isso não merece cadeia, merece um
abraço". Defendeu-se dizendo que, claro, aquilo era apenas uma piada.
Kkkkk.
Os homens que
participaram desse estupro coletivo no Rio de Janeiro foram os que violaram a
menina, os que a filmaram, os que compartilharam esse vídeo e os que fizeram
comentários e piadas na internet sobre as imagens publicadas. Nenhum deles foi
capaz de questionar o crime hediondo. Nenhum deles sentiu raiva, nojo, repulsa.
Nenhum deles brigou para salvar a garota. Não saiu porrada. Nenhum deles foi a
exceção: eles são a regra. No vídeo há gargalhadas. Em redes sociais, riram da
mulher desacordada e sangrando assim: Kkkkk. Todos eles também devem achar as
piadas de Alexandre Frota e Rafinha Bastos sobre estupro muito engraçadas.
Kkkkk.
*
Os números
oficiais afirmam que uma mulher é estuprada no Brasil a cada 11 minutos. Como o
crime é o mais subnotificado de todos, acredita-se que apenas entre 10% a 35%
registrem queixa à polícia. Conhecendo nossa polícia, faz sentido. Estudos do
Ipea apontam justamente para o pior cenário: 476 mil casos de estupro em 2014
no Brasil, cerca de um estupro por minuto. Segundo pesquisa Datafolha, 90% das
brasileiras têm medo de ser vítima de agressão sexual. Faz sentido. Enquanto
você leu os parágrafos acima, duas brasileiras devem ter sido estupradas.
O apelido do
criminoso que divulgou o vídeo desse estupro é Michel Brasil. Faz sentido.
Nesse país machista, autoritário, patriarcal e violento, onde culpar a vítima é
regra e a impunidade de gente como ele está garantida, ele está em casa. Não só ele. Nós. Todos os homens
somos responsáveis pela manutenção da violência contra a mulher. Não precisamos
atacá-las fisicamente ou fazer piadas misóginas naturalizando violência para
isso. Ao negar sua voz, ao tratá-la como nossa propriedade, ao objetificar sua
existência, ao sermos os prepotentes narcisistas perversos e opressores que
costumamos ser: o problema é nosso, a culpa também.
Só ficar
consternado e escrever textinho oportunista pra ficar bem na fita não adianta.
Existe um abismo de empatia que precisa ser atravessado – e isso é uma batalha
diária que precisamos travar contra nós mesmos, contra nossa própria covardia e
privilégios de gênero. Do contrário, nossas atitudes e palavras em momentos
como esse terão a mesma substância de um livro de mesa de centro. Autocrítica
ou desconstrução é pouco: precisamos de uma autodemolição.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopaulocuenca/2016/05/1775322-ministerio-da-educacao-e-da-cultura-do-estupro.shtml
quarta-feira, 25 de maio de 2016
desabafo no calor da hora - por alberto pucheu (via facebook)
"o golpe
escrachou para todo o país que não temos lei, que vivemos um estado de exceção.
a presidenta, diga-se, a honestidade em pessoa (a única
nesse quesito totalmente ilesa até agora) e representante maior do poder, foi
derrubada, evidenciando simultaneamente em todo o processo os criminosos que
deram o golpe. como se não bastasse o que vimos na câmara, como se não bastasse
a não punição de cunha e da maioria dos bandidos da câmara, como se não
bastasse a fala de bolsonaro no dia (e a de tantos outros) e em tantos outros
dias, como se não bastasse a evidência de um senado integralmente comprometido,
como se não bastasse a evidência do supremo comprometido, dos altos empresários
e da fiesp comprometidos, as gravações desses dias provam de algum modo os
participantes do golpe, que não apenas estão soltos, mas estão governando o
país, tendo o golpe sido dado. mas não basta isso, é preciso a cada minuto um
ato pior, é preciso revogar o que antes sustentava alguma possibilidade de
vida, é preciso lançar-nos a cada dia num ainda pior, de modo que, quando, a
cada momento, pensamos que chegamos ao fundo do poço, vemos que não, vemos que
o poço que querem criar não tem fundo. trata-se evidentemente de tirar o fundo,
mesmo que na cara de todos. está sendo assim na revogação das conquistas em
todos os níveis. foi assim na formação do ministério e, na extinção dos
ministérios do pensamento, da criação e da diversidade. hoje, como mais um
elemento sórdido, alexandre frota, que já se gabou em pleno programa de
auditório de ter estuprado uma mulher dando detalhes de como havia feito a um
auditório que ria, foi pautar o ministério da educação, recebido pelo ministro,
que certamente compactua com ele. no momento, não consigo desvincular o horror do estupro na moça cometido pelos 30 criminosos dessa suspensão absoluta da lei
que estamos vivendo da maneira mais evidenciada possível, que foi criada pelos
bandidos que governam esse país. lembremos do senador perella, o traficante de
cocaína, sendo senador e votando contra dilma, claro. dilma foi simbolicamente
estuprada pelos bandidos machos. a moça foi literal e realmente estuprada pelos
bandidos machos. a bandidagem pode tudo, é o sinal do supremo (é o sinal
supremo), do congresso, da mídia, da fiesp, desses bandidos majoritários,
fabricando um mundo sem lei. o brasil nunca foi afeito ao cumprimento da lei,
mas agora chegou num nível insuportável. é o horror o que querem."
Alberto Pucheu: http://www.albertopucheu.com.br/
sábado, 14 de maio de 2016
miopia grave
A miopia e o conservadorismo do grupo que tomou de
assalto o poder no Brasil encontram “a sua mais completa tradução” na extinção do Ministério da Cultura. Alguém poderá dizer que a ausência de
representatividade social no “novo” ministério é um sintoma pior, ou mais
contundente. O desprezo à cultura, no entanto, conceito dos mais complexos da
sociedade, de qualquer sociedade, traz em seu bojo os demais vícios da referida composição ministerial ― o macho adulto branco sempre no comando, para falar
junto com outra canção de Caetano.
quinta-feira, 12 de maio de 2016
apenas uma palavra - marcelino freire
“Dizem que sempre falta uma palavra e é verdade. Nesses anos todos eu sei que sim, que sempre
falta uma palavra, é verdade. Verdade.”
um país com mau humor
A maioria dos cartunistas do portal “a charge online”
agiram como moleques levianos diante da gravidade do momento. Uma exceção é a
charge a seguir, de Cláudio Paiva, publicada ontem.
"amor, essa palavra de luxo"
Em país de traidores, fica difícil rezar o “Pai-nosso”.
Bastaria o segundo mandamento, “amar o próximo como a ti mesmo.” Mas o próximo
é relativo, mutável, mutante. Num país sem face, amar é um luxo para poucos.
Citação: Adélia Prado, "Ensinamento".
terça-feira, 3 de maio de 2016
domingo, 24 de abril de 2016
Augusto dos Anjos
O POETA DO
HEDIONDO
Sofro aceleradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!
Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas!
Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah! Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...
Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!
Augusto dos Anjos. Eu e outras poesias. Rio de Janeiro:
Betrand Brasil, 2010, p.193.
Hediondo.
Adjetivo.
1 que apresenta deformidade; que causa horror; repulsivo, horrível. Ex.: rosto
h. 2. Derivação: sentido figurado. que provoca reação de grande indignação
moral; ignóbil, pavoroso, repulsivo. Ex.: traição h., crime h.
cena de filme
Gosto muito quando, num filme, o personagem tem
alguma espécie de trégua e fica a contemplar a chuva escorrendo pelos vidros da
janela. A cena se converte no mesmo instante em objeto de desejo para mim:
quero aquele lugar subjetivo. O problema é que, a chuva vindo, não traz consigo
a tranquilidade, ainda que fictícia. Mas eu a prefiro à cena do filme.
ode ao cuspe
ODE
AO CUSPE
(via textão, do Cronisias)
“Soprar ou cuspir em alguma coisa,
dizia Jung, tem um efeito mágico, como, por exemplo, quando Cristo utilizava
sua saliva para curar um cego”
por Gilson Iannini
Para Jean
Em sua Psicologia da composição,
João Cabral de Melo Neto termina seu manifesto contra a poesia dita profunda do
seguinte modo:
Poesia, te escrevo
agora: fezes, as
fezes vivas que és.
Sei que outras
palavras és, palavras
impossíveis de poema.
Te escrevo, por isso,
fezes, palavra leve,
contando com sua
breve. Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais; tão cuspe
como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais.
Trata-se de um poema programático,
contra o lirismo burguês (comedido ou desmedido, tanto faz). O poema começa desconstruindo
a metáfora que equivale a poesia e a flor, e prossegue num vertiginoso
procedimento metonímico que consiste em constituir uma série que vai das fezes
ao cuspe. Na última estrofe, a terceira das virtudes teologais – o amor ou a
caridade – é evocada através de sua “descrição definida”, sem que seu nome
possa sequer ser enunciado. Como se um novo mandamento poético se impusesse:
“poesia, não evocarás o santo nome do amor em vão”! Uma descrição definida é um
conceito lógico que designa o conteúdo semântico ou o valor cognitivo de um
nome próprio. A estratégia do poeta visa denunciar o abuso banal da palavra
“amor”, ubíqua na poesia ingênua.
Poesia, portanto, é flor, apenas quando
flor pode significar outra coisa que um desabrochar puro da natureza. Poesia é,
na verdade, fezes, cuspe. Impossível não lembrar de Jung, que escreve: “soprar
ou cuspir em alguma coisa tem um efeito mágico, como, por exemplo, quando
Cristo utilizava sua saliva para curar um cego”. Dizer que a poesia é
cuspe, lembra-nos Tenório, é “admitir que ela pode curar alguém, ou melhor
ainda, fazê-lo ver”. Em alguns casos, portanto, cuspir é um ato de amor, uma
caridade, uma virtude teologal. Em algumas circunstâncias, nas quais reina a
infâmia e a desonra, apenas um cuspe foi capaz de repor o sagrado no seio do
profano, a verdade no meio da falação dos fariseus.
Enquanto impera a mentira e o ódio,
para que a verdade possa falar, é preciso, de alguma forma, interromper a
farsa, suspender o regime discursivo que instalara a infâmia como regra do
jogo. Apenas um ato, no sentido lacaniano do termo, seria capaz de estancar o
fluxo regrado da farsa. Não adianta, para isso, contrapor argumentos ou apontar
contradições ou inconsistências. A farsa não é sensível à argumentação lógica.
Interessado em investigar as consequências psíquicas da guerra, Freud escreve:
“logo, argumentos lógicos seriam impotentes perante os interesses afetivos e,
por isso, a contenda com fundamentos, que segundo Falstaff são tão comuns como
as amoras, é tão infrutífera no mundo dos interesses. (…) A cegueira lógica que
esta guerra magicamente provocou, justamente nos nossos melhores concidadãos,
é, portanto, um fenômeno secundário, uma consequência da excitação dos
sentimentos que esperamos poder ver desaparecer junto com ela”.
Pois todo o universo que orbita em
torno de Cunha, naquele momento, é regido pela farsa e pela hipocrisia. Num
universo presidido pela hipocrisia, tudo é permitido. A palavra “hipocrisia”
vem do grego. Segundo registra o Houaiss, designa a “ação de
desempenhar um papel, uma peça, uma pantomima; desempenho teatral, declamação;
simulação, dissimulação, falsa aparência”. A conotação de “dissimulação”
consolida-se apenas na baixa Idade Média, depois que um dos principais
tradutores da Bíblia para o latim, São Jerônimo, emprega o termo para designar
os falsos cristãos, aqueles devotos, muitas vezes fervorosos, que pregam a
palavra de Deus, mas que agem contrariando aquilo que pregam.
Quando uma sessão solene do Congresso
nacional é instalada, ironicamente no horário da missa dominical, sob o signo
da hipocrisia, regida por um corrupto contumaz, capaz de evocar a misericórdia
divina, naquele instante tudo é corrompido, tudo é corrupção: corrupção das
palavras e dos gestos, corrupção das instituições e pantomima dos ritos. Não
custa lembrar o sentido filosófico da palavra corrupção: corrupção, por
exemplo, é fazer com que algo que existe passe a não existir, ou algo que não
existe passe a existir.
Não há decoro possível em nenhuma
palavra, em nenhum procedimento. Por isso, palavras como, “Deus”, “justiça”,
“liberdade” e “nobreza” estavam completamente esvaziadas de conteúdo semântico
ou corrompidas: “em nome de Deus”, “em prol da justiça”, “para libertar o
Brasil”, “meus nobres deputados aqui presentes” etc. são expressões que
designam, no melhor dos casos, nada; no pior dos casos, o contrário do que
dizem. Não custa também lembrar que, como demonstrou Freud, às vezes, quando
vigora a lógica inconsciente, palavras podem reativar sentidos antitéticos,
significando justamente o contrário de seu valor de face. Aliás, o poeta
Schiller lembrava que a insistência com que uma época fala da moralidade e de
façanhas morais singulares seria um sintoma inequívoco de debilidade cultural.
Tudo ali era vilania e desprezo. Tudo
ali era exceção. Nada ali emana do decoro. Quantos nobres deputados,
sabidamente corruptos, não levantaram a voz, dedo em riste, para bradar em nome
de Deus, da justiça e da liberdade, contra a corrupção? Não custa lembrar que a
sessão plenária do último domingo sequer tinha por objeto analisar corrupção,
de que a presidente nunca foi formalmente acusada. É de deixar pasmo qualquer
ser humano pensante que apenas uma ou duas dúzias de deputados (de um lado ou
de outro) tenham se referido ao objeto em pauta: uma dúzia disse que a
presidente cometeu crime de responsabilidade, outra dúzia que não cometeu.
Esses não faltaram com o decoro. Também não faltaram com o decoro aqueles que
denunciaram o caráter farsesco do processo. Os demais fizeram o voto Xuxa:
“queria mandar um beijo para minha mãe, meu pai e para você”, como rapidamente
o povo percebeu. Mas nada disso deveria nos espantar. Na verdade, a votação no
Congresso espelha a verdade de nossa sociedade: a absoluta maioria das pessoas,
de um lado como de outro, é incapaz de meditar, de refletir, de pensar
criticamente e de se ater a alguma coisa perto da sensatez ou dos fatos, agindo por ódio surdo ou por amor cego.
Nesse contexto, que um deputado possa
dedicar seu voto à memória de um torturador não deveria chocar. Ao contrário,
trata-se de uma consequência inevitável. O coronel Brilhante Ustra, louvado por
Bolsonaro, como “o pavor de Dilma Roussef”, não é um torturador qualquer. É um
dos mais conhecidos, não apenas por sua crueldade, mas também por seu papel de
comando. Quando um “nobre deputado” evoca seu nome no instante em que vota pelo
impedimento de uma de suas vítimas, não há humanidade, nem decoro, apenas
vilania. Quando este nobre deputado confessa a similaridade entre 1964 e 2016,
ele diz a verdade que outros tentam encobrir com um véu. Mais ainda. Bolsonaro
foi um dos poucos que elogiou entusiasmadamente a condução do processo por
Eduardo Cunha. Nada mais consistente. Nada mais significativo.
Como interromper tal espetáculo da
infâmia? Quando a palavra se descobre esvaziada, escassa, flatus vocis,
impossível não lembrar de Goethe: “No princípio era o ato.” No momento em que,
depois da aviltante declaração de obediência ao mais hediondo dos crimes, os
nobres deputados se calam diante da infâmia, “as pedras gritam”. Esta metáfora
remonta ao episódio da descida do monte das Oliveiras e da triunfal entrada de
Jesus em Jerusalém (Mt 21,1-9; Mc 11,1-10). Enquanto a multidão louvava, alguns
fariseus pediram a Jesus que repreendesse o fervor de seus discípulos. Ao que
ele respondeu “se eles se calam, as pedras gritam”. Jean Wyllis não se calou.
Foi o poeta da educação pela pedra, no sentido poético de João Cabral. O cuspe
contra a bala, já que a palavra não tem valor nenhum.
Mas o cuspe de Jean Wyllis acabou
ferindo a fina e seletiva sensibilidade da burguesia nacional. O cuspe seria um
ato de alguém sem caráter, de um veado desqualificado, que não recebeu educação
em casa e coisas que tais. É mais ou menos o que se lê nos comentários de
internautas nos grandes jornais. Curioso. Essa sensibilidade escandalizada pelo
cuspe, todavia, acolhe com indiferença, ou até mesmo com fingido escândalo, o
elogio proferido por Bolsonaro ao torturador Brilhante Ustra. Não basta dizer
que ele foi um torturador e que, por mimese, Bolsonaro também sonha em sê-lo.
Se fizermos uma “descrição definida” desse nome, essa descrição tinha que
conter coisas como: cadeira do dragão, choques na genitália, mamilos dilacerados,
crânios apertados com torniquete, unhas arrancadas, ossos quebrados,
assassínios cruéis em nome do Estado etc. Tinha que conter nomes como Auroras,
Amélias, Claras, Dilmas, entre tantos outros. Quando Bolsonaro refere aquele
nome, ele evoca tudo isso. Ele traz para dentro do Congresso Nacional o elogio
à tortura e a apologia ao crime. Com um sorriso no rosto e com o benemérito da
elite financeira de nosso país.
Alguém pode dizer que Bolsonaro é um
caso isolado. Não é. Ele figura com algo entre 6% e 8% das intenções de voto,
em quarto lugar em todos os cenários pesquisados pelo Datafolha. Não é pouco,
para alguém que é declaradamente fascista. Mas o pior não é isso. Como notou
recentemente Fernando de Barros e Silva, “entre os que têm renda familiar mensal
superior a 10 salários mínimos (…), Bolsonaro lidera a corrida presidencial.
Num dos cenários, chega a ter 23% das preferências dos eleitores mais
aquinhoados.” (Veja aqui). Quer dizer que quase um quarto da elite
econômica brasileira gostaria de ver um fascista, que faz apologia da tortura
mais cruel, na presidência da República. Não espante que batam panelas, que
inflem patos, que presenteiem seus filhos com bonecos infláveis de Lula
presidiário. Tudo isso embrulhados na bandeira nacional e entoando o hino.
Jean Wyllis não quebrou o decoro
parlamentar. Porque o decoro não havia sequer sido instalado. Não há como
quebrar algo que não existe. Eduardo Cunha, sim, quebrou o decoro com sua
primeira frase, com o simples gesto de sentar-se à cadeira e de presidir o
processo. Na falta de decência, foi seguido por muitos. Segundo, outra vez,
o Houaiss, decoro designa não apenas decência, acatamento das
normas e seriedade nas maneiras, mas também “adequação do tema ao estilo
literário”. Neste sentido, a imensa maioria dos deputados quebrou o decoro.
Quantos observaram alguma decência, alguma seriedade, alguma adequação ao tema?
Uma irrisória minoria, tanto de sins, quanto de nãos.
Nesse sentido, o gesto de Jean Wyllis é
um ato poético, um ato de caridade e de amor. Um ato verdadeiramente cristão.
Tanto mais quanto não foi apenas obra do calor do momento, mas foi efeito de um
cálculo político rigoroso. Ele interrompe a razão desvairada e repõe a verdade
em seu devido lugar: mostra que infâmia é infâmia, que farsa é farsa, que
violência é violência, que guerra é guerra. Sem mais. Ele redime todos os
brasileiros que repudiam a tortura e o golpe, qualquer que seja sua face.
Obtuso, o nobilíssimo deputado
Bolsonaro talvez não tenha percebido o verdadeiro significado do cuspe que
recebeu em pura dádiva. Ele foi presenteado com um raro ato de caridade cristã.
Ele foi presenteado com uma flor de saliva, que devolveu com poesia as fezes
que esgotam e abundam em cada uma de suas palavras infames (e também nos gestos
de seus descendentes e fiéis). A saliva de Jean faz ver seu rosto ainda mais
Brilhante, faz l’Ustrar seu verdadeiro eu.
O cuspe pode curar, como faz uma mãe
zelosa ao passar um pouquinho de saliva no dodói de sua criança. O cuspe pode
ensinar a ver que em seu espelho, no lugar do seu rosto, figuram a cadeira do
dragão, os choques nas genitais, os olhos saltados, as crianças pequenas
obrigadas a presenciar o suplício de suas mães. Pode ensinar a seus fãs que seu
amor às crianças, evocado em seu pronunciamento, não passa de uma piada de mau
gosto. Deus permita que a saliva de Jean Wyllis possa lavar seu rosto, salvar
sua alma, desarmar seu coração e seu cinturão. Recebe, Jair, essas flores cuspidas
com carinho.
Na noite da infâmia, só o cuspe me
representa.
http://revistacult.uol.com.br/home/2016/04/ode-ao-cuspe/
sexta-feira, 22 de abril de 2016
às mulheres que continuam lutando
Amanhã uma diarista virá a minha casa fazer parte do
trabalho invisível que me mantém visível ― considerando o restrito mundo em que
me movimento. Na terça, nada desandando, serei ouvida, por uma hora ― provavelmente
menos, porque não aguento ― por uma analista que, por enquanto, tem
garantido... o que exatamente? Não sei. Toda vez que tenho ganas de deixar a
análise sinto o desamparo tomar conta e percebo que, se não ir lá falar, posso
comprometer um delicado equilíbrio psíquico que construí após a queda da última
fronteira que representava minha resistência, meu forte. Até os 40 desbravei sem medo tudo o que apareceu. Eu era mais eu. Depois,
alguma coisa se quebrou nessa confiança inabalável, e pela primeira vez eu
precisei admitir que não continuaria dando conta apenas com a fortaleza que
construí na juventude. Por isso, quando vêm com essa história de “bela, recatada e do lar”, eu digo, ok, meu irmão, todos sabemos
exatamente com quantos Rivotril se faz uma bela ― capaz de encarar
as necessidades da fera. Pobre Marcela. Traidora como o ditoso cônjuge. Para as que continuam lutando, um sol de primavera.
terça-feira, 19 de abril de 2016
há os idiotas contumazes, incontestáveis, e há os que desejam que idiotas, não tão idiotas assim, aceitem que o capital é o éden da História
É o caso deste senhor, Luiz Felipe Pondé, que reclama um ensino de História alinhado aos ventos neoliberais.
com que palavras nomear o inacreditável, o inaceitável, real e surreal ao mesmo tempo?
por vezes, com as que pedimos emprestadas
segunda-feira, 18 de abril de 2016
domingo, 17 de abril de 2016
o pioneiro da delação premiada (ou de como evitar algumas coincidências)
Há uma razão ― não necessariamente racional e óbvia ―
para que a votação na Câmara dos Deputados do processo de impeachment da
presidente Dilma tenha sido adiantada, acelerada: não coincidir com o feriado de Tiradentes, atualmente herói nacional, cuja morte bárbara decorreu das ações
do mais notório delator da história do país, ou traidor, como se preferir.
sábado, 16 de abril de 2016
ser um sueco em trânsito
O SUECO
― Os problemas do Brasil, as mesquinharias de nossa vida pública, a miséria
fundamental de nosso povo, todas essas coisas de repente cansam e desanimam uma
pessoa sensível. Evandro Pequeno encontrou uma solução: “Eu sou um sueco em
trânsito.”
Não
saber de nada, não entender uma palavra do que estão dizendo ou escrevendo por
aí, não ter nada a ver com nada, não se sentir responsável por nada (muito
menos pela famosa dívida externa), não ter vergonha de nada: ser um sueco em
trânsito.
E, se
possível, como Evandro fazia, tocar fagote.
BRAGA, Rubem. Recado de primavera. 8. ed. Rio de
Janeiro: Record,2008, p.98.
sexta-feira, 15 de abril de 2016
luto
Queria ter o talento e o humor de Xico Sá. Mas tudo
o que consigo dizer é que sinto tristeza. Sinto que nada será como antes. Tristeza. Paralisia. Sou profundamente solidária a essa mulher que
(ainda) ocupa a Presidência da República. Percebi, desde o começo de 2015, que
alguma coisa podia desandar. E eis que estamos à beira de um colapso. É amargo o
que uma parcela da população brasileira, na qual me incluo, está vivendo. Amargo, triste, sem
esperança. Eu queria não ser muitas coisas. Queria não precisar estar passando
por esse momento. Continuo profundamente solidária a Dilma Rousseff. Boa e Velha
República: uma vez golpista, sempre golpista. Até que um dia, quem sabe, esse
país poderá oferecer alguma coisa de melhor para quem nele, sem escolha, tenha de nascer.
Murilo Mendes
LAMENTAÇÃO
Nenhum
homem tem mais saída:
Antes de
nós o dilúvio.
Durante,
o tédio no caos.
Depois, o
épico escuro.
A
esperança desespera,
Os olhos
não são para ver
Nem os
ouvidos para ouvir.
O diálogo
virou monólogo,
Meio-dia
é meia-noite.
Todos
curvados constroem
Suas
próprias algemas.
O longo
ai das criaturas
Sobe para
o céu
Forrado
de espadas.
MENDES,
Murilo. Poesia completa e prosa. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.386.
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