Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Franz Kafka (narrativas do espólio)

A VERDADE SOBRE SANCHO PANÇA

Sancho Pança, que por sinal nunca se vangloriou disso, no curso dos anos conseguiu, oferecendo-lhe inúmeros romances de cavalaria e de salteadores nas horas do anoitecer e da noite, afastar de si o seu demônio ― a quem mais tarde deu o nome de D. Quixote ― de tal maneira que este, fora de controle, realizou os atos mais loucos, os quais no entanto, por falta de um objeto predeterminado ― que deveria ser precisamente Sancho Pança ―, não prejudicaram ninguém. Sancho Pança, um homem livre, acompanhou imperturbável, talvez por um certo senso de responsabilidade, D. Quixote nas suas sortidas, retirando delas um grande e proveitoso divertimento até o fim de seus dias.

KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.103.

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