Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 26 de novembro de 2010

a quarta ponta do triângulo do tráfico de drogas


De tudo que se tem falado sobre a onda de violência que se intensificou na região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro, há uma espécie de silêncio em torno de um fator bem simples, mas fundamental: o usuário de drogas. É ele a meta final do tráfico. Faz bastante tempo, numa mesa da ABRALIC, alguém falava acerca do fenômeno da neofavela, hoje rebatizada de comunidade, por que em tese estaria recebendo investimentos/recursos do Estado. Esta fala caracterizou com bastante humor, e creio que com acerto, o traficante como um empresário: todas as ações dele visavam movimentar um negócio (que é lucrativo). Se há demanda na ponta do consumo, é ilusório achar que a repressão aos atuais donos do negócio vai resolver o problema. A polícia intervém na repressão a um comércio que não vai cessar. Novos chefes já estão a postos para ocupar os lugares deixados vagos. E a apologia da ação policial, promovida pela imprensa, enaltecendo os capitães nascimentos de plantão, é nefasta, na medida em que tende a transformar o que está acontecendo numa espécie de ficção que vai mudar a realidade, quando a "realidade" das pessoas que estão sofrendo com as ações da polícia (e dos traficantes e dos milicianos) talvez seja pior que as nossas piores ficções. Abaixo, um texto de Millôr Fernandes acerca das eventuais diferenças entre um banqueiro e um assaltante, que fala por si: 

Vi o milionário saltar da limusine, caminhar tranquilamente para dobrar a esquina e penetrar na mansão onde mora. Antes de dobrar, exatamente na dobra da esquina, e nas dobras da noite, lhe saiu um trintoitão na cara acompanhado da voz surda de um sujeito que ele mal viu por trás de galhos: "Passa tudo e não chia!" Homem do mundo, acostumado aos azares e venturas da economia da vida, o rico banqueiro não se deixa assustar. Apenas aconselha: “Calma, amigo. Passo tudo e não chio, que não sou besta. E vou te dizer uma coisa, reconheço o teu valor ― você faz o que pode para conseguir o que precisa. Como me assalta deve saber quem sou, um banqueiro, um capitalista. Mas, curiosamente, não sabe quem é, pois aceita o vergonhoso epíteto de assaltante. E, no entanto, você é um capitalista igualzinho a mim. Só que, até agora, conseguiu capital apenas pra se estabelecer com um trinta e oito. Boa noite. Posso ir?”

Millôr Fernandes. Disponível em: http://www2.uol.com.br/millor/economia/018.htm

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