“A gente viemos do inferno ― nós todos ― compadre meu Quelemém
instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só
conseguiu aprofundar por um relance a graça de sua substância alumiável, em as
trevas de véspera para o Terceiro Dia. Senhor quer crer? Que lá o prazer
trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais
perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com
fortes dores; e até respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem. Se creio?
Acho proseável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e
assaz me contaram; e outros ― as ruindades de regra que executavam em tantos
pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos,
cortando orelhas e línguas, não economizando as crianças pequenas, atirando na
inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de
sangues... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá
antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de
nunca esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam
para lá, constante que morrem... Viver é muito perigoso.”
ROSA, João Guimarães. Grande
sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.64-65.
Nenhum comentário:
Postar um comentário