Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 31 de julho de 2011

as portas da ficção

No ensaio “Ficções do sujeito moderno”, Julio Ramos abre muitas portas, especialmente aquela a partir da qual a literatura latino-americana pode se enxergar. Se na modernidade tardia a própria realidade se converteu em um narcótico, na síntese que faz sobre o impacto da eterna novidade da mercadoria sobre o consumidor dependente e dela intoxicado, Julio Ramos abre, por assim dizer, as portas da ficção. Pergunta-se ele, sem qualquer pretensão de encontrar uma resposta imediata: “como se dá a passagem da escrita teórica para a ficcional? ‘Fumando haxixe’, me responderá alguém. Não necessariamente ― prossegue Ramos ―, porque é mais do que sabido que quem fuma haxixe raramente escreve, ou escreve pouco e dorme. O haxixe retira de circulação o sujeito; a escrita, por outro lado, o insere numa economia de dívidas e intercâmbios, uma economia simbólica, que ― mais que a ‘morte’ sob o peso da lei ― pode muito bem implicar uma ética do desejo.”

Julio Ramos alude à morte de Walter Benjamin após ter ingerido uma dose elevada de morfina, para não cair nas mãos do nazismo. Mas sua análise é bem mais ampla e sutil, focalizando, nos muitos labirintos trilhados pelas hipóteses que descortina, intoxicações que produziram o mito moderno do criador que se autodestrói para poder criar: “A arqueologia do mito do artista autodestrutivo nos leva para uma referência mais próxima da literatura latino-americana, ao clássico relato de Julio Cortázar sobre Charlie Parker, El perseguidor, em que o pudor de Cortázar o leva a substituir a heroína de Charlie pela marijuana de Johnny Carter. O anverso do mito aparece também em outros campos da literatura latino-americana.”

De Benjamin a Pessoa, do haxixe ao ópio, dos interditos às ficções pessoanas, Julio Ramos vai conduzindo o leitor a uma nova visida do projeto estético da modernidade: “Se para Benjamin o fármaco operava como o parapeito de uma (hiper) sensibilidade exacerbada e excessivamente exposta ao shock do estímulo moderno, e ― se como assinalava Adorno em sua sutil despedida do amigo morto ― o próprio parapeito estético apenas imitava a lei do fetichismo das mercadorias e sua máquina compulsiva de produção e consumo de novas sensações, em Pessoa encontramos uma opção mais criativa: a ficcionalização literária. A literatura desvencilha o eu da sobrecarga e do trauma hipersensorial, produzindo, mediante a novidade da ficção, um laboratório de mundos e sensações possíveis, sem o engate ― o hook ― do ego submetido à compulsão regressiva e narcisista do uso e consumo de drogas ou objetos.”

Que se escreva, pois. E se leia, engendrando laboratórios de possibilidades de fuga ao curto-circuito-cicuta do capitalismo.

RAMOS, Júlio. Ficções do sujeito moderno: um diálogo improvável entre Walter Benjamin e Fernando Pessoa. Trad. Rômulo Monte Alto. ___. SOUZA, Eneida Maria; MARQUES, Reinaldo (Orgs.). Modernidades alternativas na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p.32-55.

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