No ensaio “Ficções do sujeito moderno”, Julio Ramos abre muitas portas, especialmente aquela a partir da qual a literatura latino-americana pode se enxergar. Se na modernidade tardia a própria realidade se converteu em um narcótico, na síntese que faz sobre o impacto da eterna novidade da mercadoria sobre o consumidor dependente e dela intoxicado, Julio Ramos abre, por assim dizer, as portas da ficção. Pergunta-se ele, sem qualquer pretensão de encontrar uma resposta imediata: “como se dá a passagem da escrita teórica para a ficcional? ‘Fumando haxixe’, me responderá alguém. Não necessariamente ― prossegue Ramos ―, porque é mais do que sabido que quem fuma haxixe raramente escreve, ou escreve pouco e dorme. O haxixe retira de circulação o sujeito; a escrita, por outro lado, o insere numa economia de dívidas e intercâmbios, uma economia simbólica, que ― mais que a ‘morte’ sob o peso da lei ― pode muito bem implicar uma ética do desejo.”
Julio Ramos alude à morte de Walter Benjamin após ter ingerido uma dose elevada de morfina, para não cair nas mãos do nazismo. Mas sua análise é bem mais ampla e sutil, focalizando, nos muitos labirintos trilhados pelas hipóteses que descortina, intoxicações que produziram o mito moderno do criador que se autodestrói para poder criar: “A arqueologia do mito do artista autodestrutivo nos leva para uma referência mais próxima da literatura latino-americana, ao clássico relato de Julio Cortázar sobre Charlie Parker, El perseguidor, em que o pudor de Cortázar o leva a substituir a heroína de Charlie pela marijuana de Johnny Carter. O anverso do mito aparece também em outros campos da literatura latino-americana.”
De Benjamin a Pessoa, do haxixe ao ópio, dos interditos às ficções pessoanas, Julio Ramos vai conduzindo o leitor a uma nova visida do projeto estético da modernidade: “Se para Benjamin o fármaco operava como o parapeito de uma (hiper) sensibilidade exacerbada e excessivamente exposta ao shock do estímulo moderno, e ― se como assinalava Adorno em sua sutil despedida do amigo morto ― o próprio parapeito estético apenas imitava a lei do fetichismo das mercadorias e sua máquina compulsiva de produção e consumo de novas sensações, em Pessoa encontramos uma opção mais criativa: a ficcionalização literária. A literatura desvencilha o eu da sobrecarga e do trauma hipersensorial, produzindo, mediante a novidade da ficção, um laboratório de mundos e sensações possíveis, sem o engate ― o hook ― do ego submetido à compulsão regressiva e narcisista do uso e consumo de drogas ou objetos.”
Que se escreva, pois. E se leia, engendrando laboratórios de possibilidades de fuga ao curto-circuito-cicuta do capitalismo.
RAMOS, Júlio. Ficções do sujeito moderno: um diálogo improvável entre Walter Benjamin e Fernando Pessoa. Trad. Rômulo Monte Alto. ___. SOUZA, Eneida Maria; MARQUES, Reinaldo (Orgs.). Modernidades alternativas na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p.32-55.
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