Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Rio antigo

Detalhe de Mapa Geral do Rio de Janeiro, de Randy Macnally, ano 1879 (aqui)

A tradução para inglês ver da cidade do Rio de Janeiro cria pérolas linguísticas e futebolísticas. Este paraíso ― em que o metrô, além de sempre lotado, agora conta com as mesmas freadas bruscas do trânsito comum, acompanhadas de um solene pedido de desculpas; em que as vans obedecem a estranhos mecanismos de deslocamento, para ficar só com dois exemplos do transporte coletivo, que é apenas um dos problemas da cidade ― dá exemplos contundentes de que Machado de Assis não trancou quem devia na famosa Casa Verde. O circo armado para o sorteio das eliminatórias da Copa de 2014, custando absurdos 30 milhões aos reais cofres públicos, é um pontapé inicial revelador de quão distorcida está a visão das autoridades sobre a cidade que governam segundo suas fantasias, eufemismo para interesses escusos. O brasileiro mal pago parece se sentir recompensado nas orgias financeiras do futebol, e acaba aceitando: é assim mesmo. O normal é relativo a quem diz o que é a normalidade. No tempo da Casa Verde, Machado de Assis já devia se horrorizar com o que via, e criou Itaguaí e seu médico-monstro. Ao que tudo indica, o Rio de Janeiro para inglês ver, versão 2014 e 2016, está se mostrando na sua mais tosca tradução. Resta saber, no mapa da remodelação da cidade, onde ficará the lunatic asylum. Há um século atrás a belle époque tropical engendrou a figura da mulata apertada em um vestido francês; na vertigem das mudanças em curso hoje que diria um Lima Barreto? Um Machado de Assis? No conto "Pai contra mãe", Machado fornece uma alegoria contundente das transformações por que passava então o país, regidas pela violência da reação e dos imperativos da sobrevivência. Cândido Neves salva seu filho da roda dos enjeitados, mas para tal uma escrava fugida tem o filho sacrificado: "Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração", formulação com que o narrador traduz a mistura entre sentimento e racionalidade em Cândido Neves. Para alcançar o que quer, Cândido Neves não poupa esforços, não tem qualquer piedade ou sentimento de solidariedade: é a fria razão no encalço da escrava fugida. Já a face voltada para o lar é toda ternura e afeição. Novamente o medalhão, a dupla face do capital entre nós: duro e áspero na consecução de seus objetivos; amoroso e terno para com seus beneficiados. A imagem de um Rio amoroso, afetivo: eles sempre vão encontrar uma solução sentimentaldisse Torquato. Nada aqui parece escapar disso. E eu não tenho qualquer ingenuidade em relação ao país em que me coube por destino viver. Poderia ser aquela escrava fugida, jamais o Cândido Neves. Hoje, na luta de pai contra mãe, está muito difícil saber quantos e quais são os lados.

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