Nas imagens desta noite, a vida mostrou sua face de compartimento e de barro amontoado. Num lugar conhecido, já trilhado, prédios eram arrasados para dar lugar a novos, o furor da renovação. Ia visitar uma amiga, que se responsabilizara por um importante documento meu ― e ao final descobri que ela perdera-o de forma negligente, e então teria que começar todo o processo novamente. Movia-me em espaços estranhos, montes de areia e uma geografia já pouco reconhecível. Mas o mais assustador era o compartimento a que esta amiga tinha sido reduzida (é preciso tomar cuidado ― a responsabilidade aumenta ou diminui consoante a forma verbal). Se sonhos são condensações ― e se a fantasmagoria de Dostoiévski mostrou o quanto o espaço pode limitar as pessoas ― então havia algo em forma de geladeira dividido em três partes, e a parte de cima cabia à amiga ― ou àquela amizade? ― vida congelada e vazia a um só tempo ―, amiga que não cheguei a encontrar... Caminhava sobre destroços ― meus, do passado (o pálido documento perdido, papel branco organizado contrastando com o barrento e amontoado de tudo), da amizade finda, da vida afinal engolida pelo mais forte das grandes estruturas ―, e enquanto caminhava ia tentando encontrar um ponto onde afetivamente pudesse me reconhecer, para então retornar. Para onde? Uma viagem costuma ter um ponto de partida: o ponto de partida desta parecia ser o próprio percurso, mais propriamente a busca pelo documento. E se há o branco do gelo, do papel alusivo ao documento apenas vislumbrado na imaginação que sonhava, predominava o marrom dos destroços, dos monturos de terra. Vida em movimento. Documento: o pálido papel branco tentando mostrar como organizado e limpo o barrento e amontoado de tudo. Compartimento que resume, reduz. Documento: há sempre muitas versões, mas aquela dada pela noite mostra o quanto o documento do dia ― tênue papel branco mais desejado que efetivamente posse de uma concretude ― empalidece ante o barro ― matéria viva, da vida ― que a noite coloca em movimento.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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