Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 31 de julho de 2011

sonhando o caos

Nas imagens desta noite, a vida mostrou sua face de compartimento e de barro amontoado. Num lugar conhecido, já trilhado, prédios eram arrasados para dar lugar a novos, o furor da renovação. Ia visitar uma amiga, que se responsabilizara por um importante documento meu ― e ao final descobri que ela perdera-o de forma negligente, e então teria que começar todo o processo novamente. Movia-me em espaços estranhos, montes de areia e uma geografia já pouco reconhecível. Mas o mais assustador era o compartimento a que esta amiga tinha sido reduzida (é preciso tomar cuidado ― a responsabilidade aumenta ou diminui consoante a forma verbal). Se sonhos são condensações ― e se a fantasmagoria de Dostoiévski mostrou o quanto o espaço pode limitar as pessoas ― então havia algo em forma de geladeira dividido em três partes, e a parte de cima cabia à amiga ― ou àquela amizade? ― vida congelada e vazia a um só tempo ―, amiga que não cheguei a encontrar... Caminhava sobre destroços ― meus, do passado (o pálido documento perdido, papel branco organizado contrastando com o barrento e amontoado de tudo), da amizade finda, da vida afinal engolida pelo mais forte das grandes estruturas ―, e enquanto caminhava ia tentando encontrar um ponto onde afetivamente pudesse me reconhecer, para então retornar. Para onde? Uma viagem costuma ter um ponto de partida: o ponto de partida desta parecia ser o próprio percurso, mais propriamente a busca pelo documento. E se há o branco do gelo, do papel alusivo ao documento apenas vislumbrado na imaginação que sonhava, predominava o marrom dos destroços, dos monturos de terra. Vida em movimento. Documento: o pálido papel branco tentando mostrar como organizado e limpo o barrento e amontoado de tudo. Compartimento que resume, reduz. Documento: há sempre muitas versões, mas aquela dada pela noite mostra o quanto o documento do dia  tênue papel branco mais desejado que efetivamente posse de uma concretude  empalidece ante o barro ― matéria viva, da vida ― que a noite coloca em movimento.

Nenhum comentário:

Postar um comentário