Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 25 de setembro de 2010

águas de março

Quando Tom Jobim licenciou, por tempo determinado, os direitos autorais de "Águas de Março" para a Coca-Cola houve um disse-me-disse geral: como pode um artista fazer isso, e logo para a Coca-Cola? Não, um artista não pode ganhar dinheiro. Tem que viver de maneira asséptica, ascética, senão o acético vinagre da discurseira corre solto. O curioso é que a Cléo Pires deve ter ganhado muito mais dinheiro expondo seu corpitcho para a Playboy, mas não ouvi ninguém, absolutamente ninguém, reclamar disso. Se isso não for hipocrisia... Segue trecho de uma entrevista concedida à Veja, em que Tom Jobim fala a respeito:

Veja: O Brasil trata bem os seus artistas?
Tom Jobim: O Brasil precisa amar os seus artistas. Ficam dizendo que nós, músicos, somos milionários. Por que não se fala a verdade no Brasil? Por que não se diz quem são os ricos? O rico é a Gal Costa, o Caetano Veloso, o Chico Buarque, o Tom Jobim? Aqui inventam uma porção de coisas, há sempre a interferência muito grande do governo na vida particular do indivíduo. Eles querem saber o que é que você está fazendo, escutar no telefone, aquele negócio todo que tivemos desde 1964. Eu fui preso, o Chico Buarque também, todo mundo foi apanhado em casa. Eu não sou subversivo, pelo contrário, eu sou um sujeito nitidamente da ordem e do progresso. Agora, o que estou vendo aqui não é nem ordem nem progresso, pelo contrário.
Veja: Mas mesmo com essas críticas você continua gostando do Brasil?
Tom Jobim: Sim. Mas é preciso ter lucidez para falar do país. Porque se a pátria é um negócio pelo qual você dá a vida, você morre e você é torturado, o que é que é isso? Isso não é a pátria. Como disse um amigo em Nova York: o meu país é aquele que me deixa viver, que não me fuzila, que não me tortura, que me deixa educar meus filhos, onde posso exercer minha profissão, que deixa eu fazer meus negócios. Você ama, ama, ama a pátria e depois como é que é? Cadê o piano? O Brasil importa metralhadoras de todos os tipos e nós não temos piano para tocar.
Veja: Não há pianos no Brasil?
Tom Jobim: Atenção, juventude, para o meu conselho: a primeira coisa que o garoto deve fazer, se quiser ser músico, é arranjar um contrabandista. Se não for assim, não terá um instrumento decente.
Veja: Você trabalha muito?
Tom Jobim: Trabalho mais do que mereço. Eu sou uma usina de música. Tenho mais de 500 músicas gravadas e faço questão de acompanhar todas as etapas do meu disco. Tem horas que não quero trabalhar, prefiro andar na praia, sair para comprar um jornal, ver uma garota na praia – à distância e com muito respeito –, mas quase não dá, tanto aqui como no exterior.
Veja: Muita gente o criticou por ter cedido Águas de Março para os anúncios da Coca-Cola. Você fica magoado com isso?
Tom Jobim: Há quase dois anos que eu não bebo. Só posso beber café, água e refrigerantes. A Coca-Cola se aproximou de mim para fazer um anúncio, eu achei ótimo, achei que não fazia mal a ninguém, pois vejo todo mundo tomando Coca-Cola. Aí esses meus amigos – entre aspas, Jards Macalé, Antônio Houaiss e Luiz Carlos Vinhas – começaram a dizer que eu tinha vendido o Brasil à Coca-Cola. Essas pessoas resolvem que fazer anúncios para a Coca-Cola é pecado. Eu posso anunciar cachaça, Brahma Chopp, mas não posso cometer o pecado mortal que é anunciar Coca-Cola. Eu não vendi nada para a Coca-Cola. Eu apenas licenciei o mote de Águas de Março. Todo o Brasil pode cantar tranqüilamente esta música. O primeiro contrato foi por seis meses e por aquele anúncio em que eu aparecia, aqui no Brasil, recebi 280.000 cruzados. 
[Entrevista realizada em 23/03/1988. Fonte:  blog Tigre de  Fogo]

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