Elaborar experiências é uma forma de deixá-las para trás... Goethe, conforme informa o estudo de Thiago Lima Nicodemo sobre Visão do Paraíso: "Apesar de efetivamente exemplificativa de um dos fundamentos do historismo, a relação de Goethe com a compreensão do passado não se resume apenas à crítica à História Universal. Partindo do princípio de que a história não podia mais ser um instrumento de investigação de uma razão universal, Goethe, de modo muito fragmentário ao longo de sua obra, procurou formular uma reflexão sobre a história. Uma de suas proposições mais célebres sobre esse tema foi estabelecida em um aforismo composto provavelmente em 1821, no final de sua vida: 'Escrever história é um modo de livrar-se (ou emancipar-se) do passado'.* É muito sugestivo relacionar esse aforismo com considerações presentes em algumas de suas principais obras. Mais especificamente, a ação de livrar-se do passado, ou seja, de romper violentamente com dado passado, construindo uma realidade totalmente nova em seu lugar, nos remete a uma de suas obras essenciais, o Fausto. [...] Seja em um pequeno aforismo, seja em toda uma obra como Fausto, é preciso buscar dialeticamente as origens da negação. Na sua forma original, o aforismo de Goethe conta com uma peculiaridade. A ação de livrar-se do passado é composta a partir de uma expressão idiomática típica da língua alemã: 'vom Halse zu schaffen', ou seja, 'retirar do pescoço' (o passado). A impossibilidade de se traduzir uma expressão como essa da língua alemã obriga [...] a traduzir apenas o sentido geral da frase e, infelizmente, perde-se uma nuança particularmente interessante. 'Retirar do pescoço', mesmo que soe estranho em português, é uma referência corpórea. Na tradução, o 'livrar-se' dá ênfase unicamente à ação, enquanto no 'livrar-se' da versão original sabe-se que o passado está localizado em uma região sensível, no corpo daquele que quer se livrar. Fica, portanto, um pouco mais claro a razão de livrar-se do passado: algo que está no pescoço e que se deseja retirar refere-se a uma sensação de desconforto, de incômodo. Essa agonia imobilizadora, de ser abocanhado por um cão de caça como uma presa, ganhou, com a sedimentação de um mundo urbano e industrial, uma acepção bastante metafórica. Passou a denominar uma das sensações mais características da vida moderna: o worrying, isto é, uma preocupação sem, necessariamente, motivo aparente, que provoca um desconforto contínuo. A ação de livrar-se do passado para Goethe, portanto, alude a um passado presente, contido dentro do próprio ser, que provoca uma sensação de desconforto ou agonia. Escrever história não é livrar-se de qualquer passado, é livrar-se da parcela agonizante de seu próprio passado dentro de si. Fausto, aliás, sucumbe justamente por isso: quando sua empreitada modernizadora termina e não há mais nada a ser feito, ele se dá conta de que o passado que ele fez questão de destruir de modo inescrupuloso é justamente o seu."
* Em nota, Thiago Nicodemo informa, acerca do aforismo de Goethe: "No original alemão: 'Geschichte schreiben ist eine Art, sich das Vergangene vom Halse zu scheffen'. [...] Na edição brasileira, o aforismo foi traduzido do seguinte modo: 'Escrever história é um modo de desembaraçar-se do passado'. J. W. Goethe, Máximas e Reflexões, 2003, p.30."
NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vivido. Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 50. São Paulo: EDUSP, 2008, p.24-26.
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