Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 19 de setembro de 2010

"Escrever história é um modo de livrar-se (ou emancipar-se) do passado" - Goethe

Elaborar experiências é uma forma de deixá-las para trás... Goethe, conforme informa o estudo de Thiago Lima Nicodemo sobre Visão do Paraíso: "Apesar de efetivamente exemplificativa de um dos fundamentos do historismo, a relação de Goethe com a compreensão do passado não se resume apenas à crítica à História Universal. Partindo do princípio de que a história não podia mais ser um instrumento de investigação de uma razão universal, Goethe, de modo muito fragmentário ao longo de sua obra, procurou formular uma reflexão sobre a história. Uma de suas proposições mais célebres sobre esse tema foi estabelecida em um aforismo composto provavelmente em 1821, no final de sua vida: 'Escrever história é um modo de livrar-se (ou emancipar-se) do passado'.* É muito sugestivo relacionar esse aforismo com considerações presentes em algumas de suas principais obras. Mais especificamente, a ação de livrar-se do passado, ou seja, de romper violentamente com dado passado, construindo uma realidade totalmente nova em seu lugar, nos remete a uma de suas obras essenciais, o Fausto. [...] Seja em um pequeno aforismo, seja em toda uma obra como Fausto, é preciso buscar dialeticamente as origens da negação. Na sua forma original, o aforismo de Goethe conta com uma peculiaridade. A ação de livrar-se do passado é composta a partir de uma expressão idiomática típica da língua alemã: 'vom Halse zu schaffen', ou seja, 'retirar do pescoço' (o passado). A impossibilidade de se traduzir uma expressão como essa da língua alemã obriga [...] a traduzir apenas o sentido geral da frase e, infelizmente, perde-se uma nuança particularmente interessante. 'Retirar do pescoço', mesmo que soe estranho em português, é uma referência corpórea. Na tradução, o 'livrar-se' dá ênfase unicamente à ação, enquanto no 'livrar-se' da versão original sabe-se que o passado está localizado em uma região sensível, no corpo daquele que quer se livrar. Fica, portanto, um pouco mais claro a razão de livrar-se do passado: algo que está no pescoço e que se deseja retirar refere-se a uma sensação de desconforto, de incômodo. Essa agonia imobilizadora, de ser abocanhado por um cão de caça como uma presa, ganhou, com a sedimentação de um mundo urbano e industrial, uma acepção bastante metafórica. Passou a denominar uma das sensações mais características da vida moderna: o worrying, isto é, uma preocupação sem, necessariamente, motivo aparente, que provoca um desconforto contínuo. A ação de livrar-se do passado para Goethe, portanto, alude a um passado presente, contido dentro do próprio ser, que provoca uma sensação de desconforto ou agonia. Escrever história não é livrar-se de qualquer passado, é livrar-se da parcela agonizante de seu próprio passado dentro de si. Fausto, aliás, sucumbe justamente por isso: quando sua empreitada modernizadora termina e não há mais nada a ser feito, ele se dá conta de que o passado que ele fez questão de destruir de modo inescrupuloso é justamente o seu." 


* Em nota, Thiago Nicodemo informa, acerca do aforismo de Goethe: "No original alemão: 'Geschichte schreiben ist eine Art, sich das Vergangene vom Halse zu scheffen'. [...] Na edição brasileira, o aforismo foi traduzido do seguinte modo: 'Escrever história é um modo de desembaraçar-se do passado'. J. W. Goethe, Máximas e Reflexões, 2003, p.30."

NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vividoVisão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 50. São Paulo: EDUSP, 2008, p.24-26.

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