Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 19 de setembro de 2010

Antonio Candido e Sérgio Buarque de Holanda: episódios de uma amizade

“A esta altura, decênio de 50, a nossa amizade já estava consolidada e a nossa convivência era constante, como foi até sua morte. Mencionarei para terminar um fato pitoresco para mostrar como nos divertíamos, porque inventávamos diários apócrifos de figurões, elaborávamos biografias imaginárias, fazíamos longos exercícios com a Gnomonia de Jaime Ovalle, ― de acordo com aquele enorme senso de humor que era uma de suas constantes. O caso foi que estando ele [Sérgio Buarque de Holanda] ensinando na Itália, onde ficou de 1952 a 1954, eu resolvi lhe escrever uma carta como se fosse de trezentos anos antes, mas dando notícias de coisas presentes. A linguagem era aquela tosca e irregular das Atas da Câmara, Autos de Visitação, etc. Havia problemas difíceis de resolver, como, por exemplo, dar uma notícia sobre Rodrigo Melo Franco de Andrade, nosso grande amigo, que era mineiro, mas Minas ainda não existia... Então inventei a fórmula: ‘natural de Cappitania das Minas que estam pera se achar’. Anoto isto para contar a grande inventividade dele na resposta. Esta veio em mãos, trazida por um amigo comum que viajava de avião. De que maneira relatar este fato no século XVII? Sérgio escreveu: ‘He portador desta Dom Paulo Mendes Dalmeyda que se passa a esa Comquista na máquina Passarola, que ha de inuentar a seo tempo o Padre Berto Lameu de Guzman da villa de Santos nessa marinha’.
Daí se desenvolveu uma correspondência que, devo dizer, era bastante picante. Mas a certa altura eu não agüentei o tranco, porque, estando em Nova York, creio que em 1966, ele me respondeu em inglês do século XVII! De outra feita, quando estava no Chile, mandou em versos uma admirável Carta Chilena, que Manuel Bandeira publicou, porque ele lhe mandou cópia (é a única divulgada). E mais tarde, chegou a mandar uma em latim, desnorteando completamente a minha capacidade que parava no Português de Piratininga.”

CANDIDO, Antonio. Amizade com Sérgio. Revista do Brasil, Rio de Janeiro, Ano 3, n. 6, p.133, 1987.

P.S. A referida Carta Chilena existe de fato, e está na fila da postagem. Quando à “Gnomonia de Jaime Ovalle”, uma das brincadeiras mais irreverentes daquela geração, segue uma apresentação sucinta e cheia de humor, pelo blog Artilharia Cultural (link aqui).

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