Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 21 de setembro de 2010

Jorge de Lima: "entre a raiz e a flor, o tempo e o espaço"

Apresentei a análise do poema abaixo como um exercício informal ao prof. Raimundo Carvalho, quando cursei sua disciplina sobre poesia moderna ― mais propriamente poesia modernista ― no Mestrado em Estudos Literários da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), em 2002. Dos vários poemas do cânone modernista brasileiro que lemos e discutimos, este soneto do Jorge de Lima foi o que mais me fascinou. E sequer sei se a escansão, que me levou a versos decassílabos, está correta ― o fato é que o professor, um exímio conhecedor de poesia, resolveu não mexer com ela, ou porque isso não fosse importante para ele, ou porque ele julgasse que no fundo o aluno precisa dar suas cabeçadas para aprender. Acho que se trata da segunda opção. Seguem o poema e a análise:

Entre a raiz e a flor: o tempo e o espaço,
e qualquer coisa além: a cor dos frutos,
a seiva estuante, as folhas imprecisas
e o ramo verde como um ser colaço.

Com o sol a pino há um súbito cansaço,
e o caule tomba sobre o solo de aço;
sobem formigas pelas hastes lisas,
descem insetos para o solo enxuto.

Então é necessário que as borrascas
venham cedo livrá-la da cobiça
que sobe e desce pelas suas cascas;

que entre raiz e flor há um breve traço:
o silêncio do lenho, ― quieta liça
entre a raiz e a flor, o tempo e o espaço.

LIMA, Jorge de. Poesia completa. Org. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p.474. [Para quem se chateia com análises, basta não seguir adiante na leitura.]

Formalmente, trata-se de um soneto com um padrão de rimas bastante interessante, pois por de trás de uma aparente irregularidade (abca aacb ded aea) observa-se, nas finalizações dos versos, a presença de um fonema que se sobrepõe aos demais, a terminação “aço” (rima “a”), presente em seis dos versos, contra duas vezes das demais (rimas “b”, “c”, “d” e “e”), de forma que ocorrem:

a.    rimas entre versos de uma mesma estrofe, observável em todas elas;
b.    rimas entre versos de estrofes contíguas: entre a 1ª e 2ª estrofes (três rimas, uma delas presente quatro vezes) e entre a 3ª e  4ª estrofes (uma rima);
c.     rimas entre versos de estrofes não-contíguas: entre  a 1ª e 4ª estrofes (uma rima, presente quatro vezes) e entre a 2ª e 4ª estrofes (uma rima, presente quatro vezes).

Cumpre ainda o observar a semelhança do padrão de rimas dos dois tercetos finais (ded  e aea), além da rima entre estas duas estrofes, produzindo um conjunto de alta unidade poética. Assim, o padrão de rimas “a b c a/ a a c b/ d e d/ a e a”  constitui uma rede: as rimas “a”, “b” e “c” unem os quartetos; a semelhança de padrão de rimas e a rima “e” unem os tercetos; a rima “a” une os dois quartetos entre si e ao terceto final.
Ou seja, o poema apresenta uma organicidade verificável já a partir de seu padrão de rimas, o qual configura o texto poético como um “tecido”, uma “rede” de remissões, de ecos de sons. Basta fazer a representação gráfica do padrão de rimas para visualizar essa rede de remissões, importante para sinalizar a idéia de unidade, totalidade que subjaz aos aspectos semânticos do texto. No que concerne a esses aspectos, o poema trabalha com dois planos:

a.    um plano “concreto”, material, presentificado na imagem da árvore, significante que não aparece explicitamente no texto em nenhum momento, porém sugerido pela referência a seus componentes (“raiz”, “flor”, “frutos”, “seiva”, “folhas”, “ramo verde”, “caule”, “hastes lisas”, “cascas”, “lenho”) e indicado pelo pronome oblíquo presente no 10º verso  “venham cedo livrá-la  da cobiça”  anaforicamente retomando um elemento já citado no texto, que só pode ser o significante “árvore” (livrá-la: livrar a quem? A construção sintática do texto não leva a outra leitura: livrar a árvore);
b.    um plano “abstrato”, metafísico, presentificado nas categorias de “tempo” e “espaço”.

O primeiro verso apresenta esses dois planos, já imbricados (“Entre a raiz e a flor: o tempo e o espaço”), sendo essa união, essa necessária conjunção, retomada no último verso, com ligeira variação sintática (“entre a raiz e a flor, o tempo e o espaço”), reiterando a idéia de unidade indissolúvel. As categorias de tempo e espaço se materializam na concretude de uma árvore: “acontecem” na materialidade da árvore, que (portanto) existe no tempo, obedecendo a uma cronologia, e no espaço. São, em certo sentido, essa árvore.
Entretanto, a materialidade da árvore é “qualquer coisa além” dessas categorias. É a matéria em toda a sua exuberância, palpável pelos olhos e demais sentidos: “e qualquer coisa além: a cor dos frutos/ a seiva estuante, as folhas imprecisas/ e o ramo verde como um ser colaço.” A exuberância da árvore é tal que o “ramo verde” parece querer se desprender, tornar-se ser autônomo (“colaço” = irmão de leite).
Ao mesmo tempo em que aponta para a exuberância da matéria, o poema aponta para a sua precariedade, para a finitude divisada na linha do horizonte, pois o existir é uma contingência, uma forma de manifestação do ser: a matéria existe (“acontece”) enquanto manifestação de uma potencialidade qualquer, e o faz no tempo e no espaço.
Tempo e espaço remetem então à outra face do existir, manifestação transitória de uma potencialidade que é constitutiva da matéria. A existência se configura assim como luta, como combate silencioso (“quieta liça”) entre as forças que impelem à manifestação da matéria, as forças da vida, e forças que levam à sua destruição: “Com o sol a pino há um súbito cansaço,/ e o caule tomba sobre o solo de aço;/ sobem formigas pelas hastes lisas,/ descem insetos para o solo enxuto.// Então é necessário que as borrascas/ venham cedo livrá-la da cobiça/ que sobe e desce pelas suas cascas;// que entre a raiz e a flor há um breve traço: o silêncio do lenho, ― quieta liça”.
O combate, a luta, se dá no próprio cerne da matéria, num movimento contínuo, indicado pela repetição do primeiro verso na última estrofe, fechando o poema. Essa repetição, por outro lado, e em adição ao padrão de rimas anteriormente assinalado, confere ao poema um sentido de organicidade que é a própria condição da existência de qualquer ser: existir é uma potencialidade que se concretiza, no tempo e no espaço. Existir é inseparável da materialidade que o conforma, das categorias de tempo e espaço que o enformam.

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