No ensino médio (antigo segundo grau), o estoque de inteligência parece inesgotável. A capacidade de lidar, valendo-se o mais das vezes da memória, com disciplinas muito diferentes, tentando sair-se bem da empreitada e de quebra passar num vestibular, é algo que desafia a capacidade humana de pensar. É como se vários compartimentos do cérebro estivessem sendo acionados independentemente: desliga a geografia, aciona a história, esquece a física... para lembrar de todas elas, do que se conseguiu decantar e/ou memorizar, na hora da famigerada prova do vestibular (que já foi, no Brasil, tecnicamente mais difícil, mas paradoxalmente menos concorrido, pelo menos nas universidades públicas). Nessa época de grande confusão mental, as escolhas se impõem. Qual ramo, ou especialidade, do saber escolher? Sobra algum saber para escolher? Na nebulosa daqueles tempos, comecei a perceber os limites do meu estoque de inteligência. Entendia vagamente a complexidade da Física, o bastante para perceber que não era um caminho a seguir. Aquilo tudo era muito bonito, complexo, difícil. Declinei. Escolhi Biologia, inspirada pela beleza da ilustração de uma célula. Tempos depois, a Biologia pareceu-me uma escolha insensata, cheia de desertos epistemológicos ― expressão chique com que tento traduzir a funda angústia que senti ao perceber que a moderna apropriação de Darwin pela teoria do gene egoísta tornava o ser humano mais vil, eu incluída, que toda a minha inocência antiga jamais poderia supor, suspeitar, entrever, adivinhar. Atirei-me a Fernando Pessoa, e ao que veio a reboque da tentativa de discernir alguma luz após o túnel. Impuseram-se as Letras. Na confusão de letras mal traçadas em que traçam-se escolhas, talvez tenha se confirmado para mim, por outras letras, a vileza do ser humano. A teoria do gene egoísta talvez seja muito mais verdadeira do que meu horror quis então acreditar. Holocaustos do século XX, escravidões de todos os séculos, guerras milenares, servidão desde a aurora das cavernas, submissão de tudo o que não é "macho adulto branco sempre no comando". O que sobra? Senti, certa feita, um profundo carinho pelo ser humano quando li sobre a origem da linguagem, dos sons articulados, e imaginei a dor física que ele certamente sentiu ao desenvolver a capacidade de falar, pois foi um esforço contra a natureza. Sobram as letras com que algumas ilhas fazem-se ouvir entre si, não de todo alheias ao imenso barulho dos genes egoístas.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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