Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 22 de outubro de 2010

o surgimento da crítica moderna segundo Koselleck

Reinhart Koselleck narra em Crítica e crise o surgimento da crítica moderna e sua vinculação estreita à ascensão da burguesia ao poder: “A burguesia moderna certamente nasce do foro interior secreto de uma moral de convicção privada e se consolida nas sociedades privadas” (p.67). Koselleck mostra como as guerras civis religiosas dos séculos XVI e XVII engendraram a necessidade do Estado absolutista, com a separação dos domínios da política e da moral. A consolidação do Estado moderno, por seu turno, apóia-se na teoria de Hobbes: “O Estado moderno surge, em Hobbes, tendo como pressuposto a cisão do homem em homem e cidadão” (p.36), correlata à cisão operada entre moral (domínio privado) e política (espaço público). Ou melhor: moral e política são obrigados a coincidir “quando a razão está diante da alternativa histórica entre guerra civil e ordem estatal” (p.33). O conteúdo histórico é o bastidor fundante da separação entre política e moral, ou esfera pública e privada, que condicionou o surgimento da crítica. No sentido de uma cisão do homem em homem e cidadão, o homem se tornará o refúgio de concepções morais que não podem contrariar os interesses do Estado. A ascensão e queda do Absolutismo está relacionada à progressiva extensão dos domínios do homem sobre o cidadão, por mais contraditório que isso possa parecer, e, por conseguinte, sobre a política. É que o confinamento da subjetividade ensejada pela tentativa de pacificação das guerras de religião teve como contraponto o surgimento da esfera pública e da Estética, conforme informa também Terry Eagleton em A função da crítica e Ideologia da estética. Isso se inicia na Inglaterra, no final do século XVII, com a sistematização de John Locke, que transforma esse foro privado de opinião em uma terceira lei, ao lado da lei religiosa e da lei do Estado, a lei da opinião, com poder de julgar: “Para a sociedade ascendente, as convicções se tornam um constante exercício de juízo” (p.53). A Inglaterra do século XVIII assiste assim à emergência do espaço público: “O juízo dos cidadãos, que se legitima a si mesmo como verdadeiro e justo ― isto é, a censura e a crítica ―, torna-se o poder executivo da nova sociedade” (p.53). O espaço público surge assim estreitamente associado à atividade da crítica, algo que se estenderá a todo o continente. Koselleck chama Locke de pai espiritual do Iluminismo burguês: “O advento da inteligência burguesa tem como ponto de partida o foro interior privado ao qual o Estado havia confinado seus súditos. Cada passo para fora é um passo em direção à luz, um ato de esclarecimento. O Iluminismo só triunfa na medida em que expande o foro interior privado ao domínio público. Sem renunciar à sua natureza privada, o domínio público torna-se o fórum da sociedade que permeia todo o Estado” (p.49). Segundo Koselleck, essa expressão judicativa se fará mediante duas instâncias, a franco-maçonaria e a república das letras. En passant, é interessante acompanhar a discussão em torno da separação entre razão e religião, pela submissão desta à instância da crítica, a chamada terceira lei (p.98-99). No que concerne à república das letras, o autor delimita melhor o conceito de crítica. O que importa reter é que a crítica moderna emerge de um contexto de conquista e expansão da esfera pública, e que sua ação judicativa encontrou nesse mesmo espaço a sua justificação. Em nota, Koselleck informa que a palavra “crítica é um tópico do século XVIII” (p.201, nota 151). Dito de outra forma, a crítica “emprestou seu nome ao século XVIII” (p.92). Nesse sentido, delineia-se um sentido amplo para o termo, que Koselleck procura especificar: “É inerente ao conceito de crítica levar a cabo uma distinção. A crítica é uma arte de julgar. Sua atividade consiste em interrogar a autenticidade, a verdade, a correção ou a beleza de um fato para, a partir de um conhecimento adquirido, emitir um juízo que, como indica o emprego da palavra, também pode se estender aos homens” (p.93). Substitua-se “fato” por “obra” e tem-se a delimitação do âmbito da crítica moderna, de onde se diferencia a crítica literária. Na virada do século XVIII para o XIX, ainda não se fazia uma distinção tão marcada entre arte e literatura, ou entre arte e poesia, ou entre poesia e literatura, por exemplo, sem contar que literatura, na acepção que passa a ter a partir do Romantismo, foi tomado, em princípio, como um fenômeno eminentemente moderno, o que já é outra discussão. Ou seja, também a crítica literária não se distinguia, ainda, da crítica no sentido amplo do termo, tal como o emprega Koselleck. 

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Trad. Luciana Villas-Boas Castelo Branco. Rio de Janeiro: EdUERJ; Contraponto, 1999. 

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