Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 12 de novembro de 2010

país do futuro

Há sempre um consolo: o Brasil já foi pior. Milícias anti-aborto (e milícias portando armas nas comunidades), jovens-classe-média-alta-paulistanos incitando o ódio aos nordestinos, o Enem vindo abaixo após sucessivos escândalos, a polícia-de-sempre-atira-primeiro-pergunta-depois, o mal-disfarçado racismo contra os negros ― para tudo isso há um consolo: o Brasil já foi pior. O que mudou é que não dá bem pra saber. Ah, sim, a (relativa) liberdade de expressão, além de uma tímida melhoria na distribuição de renda (embora continuemos figurando bem mal no Índice de Gini, um dos mais elevados do mundo). No mais, continuamos no mesmo país do você-sabe-com-quem-está-falando, também chamado de democracia. Abertos os ouvidos, a História desse país vai-se contando, nos detalhes, nas conversas miúdas do cotidiano. E assusta. É tão difícil, por vezes, acreditar, que fica relativamente fácil entender o trabalho de varre-memória-para-debaixo-do-tapete, que as vanguardas não se cansam de perpetrar. O que sabe a geração de hoje sobre o país do futuro? O que sei eu sobre a geração de 68?

Na segunda se volta ao trabalho
Torquato Neto
 (publicado em 13/12/1971 – 2ª feira)

Pois eu vou contar uma história.
Sem pé nem cabeça: você sabe com quem está falando? Eu respondi que não e a autoridade mostrou-se ofendidíssima. Foi por isso que explicou assim:
― Polícia.
Ora, eu agradeci, mostrei meus documentos, o cara conferiu que tudo era legal e estava em ordem e em seguida iluminou-se:
― Ora, bicho, esse teu cabelo está muito grande.
Aí eu fui alugar um apartamento para morar. Quem não precisa de um? Quando a gente mora só e tem quem convide, a gente aceita e evita o vexame. Mas quando a gente tem família, o jeito é aquele mesmo: primeiro enfrentar os porteiros olhando desconfiadíssimos para a minha cara enquanto entrega as chaves. Vai a descarta:
― Acho que nem adianta alugar. Parece que já está alugado.
Pelo telefone os caras não me vêem, de modo que a informação é batata.
― É conversa do porteiro.
― Aí eu fui lá, acertar a transa, assinar os papéis e tal. Aí o cara olhou para a minha. Aí ele conferiu muito e aí ele decidiu:
― Tem gente na frente.
Aí eu saí na rua. Primeiro na Tijuca, onde as pessoas se divertem olhando. Depois na cidade, onde as pessoas me cercaram na Rua da Assembléia e gritaram corta o cabelo dele e tal. A gente pensa: vou tomar muita pancada dessa gente.  Eles olham com ódio para o meu troféu. Meu cabelo grande e bonito espanta, espanta não, agride (a tal palavra) e eu me garanto que eu não corto.
História de cabelos...
Um cara suado e de gravata, cara de ódio, passa por mim na Conde de Bonfim, cara de uns quarenta anos, cara de pai de família classe média típico nacional, passa no seu fusquinha e quando me vê dá um berro:
― Cachorro cabeludo.
Inteiramente maluco, o cara. Doido de pedra. Ou não?
Desci do ônibus e saí andando pela Gomes Freire. Vinha uma senhora gorda fazendo compras com um garoto pequeno e um tipo ― filho com jeitão de funcionário público sei lá de que quê. De longe, enquanto eu vinha, eles já sorriam e cochichavam tramando. Eu vi. Bem na minha frente os três pararam e a vanguarda do movimento adiantou-se ― era o garotinho.
― É homem ou mulher?
Eu respondi.
― Mulher.
O rapazinho, o outro, gritou. Atenção: gritou.
― Cala a boca, cabeludo desgraçado.
A mulher deu uma gargalhada e eu passei.
Inteiramente malucos, doidos varridos, doidos de pedra. Ou não?
Aí, crianças, a gente declara novamente: são uns malucos. São uns loucos. São uns totalitaristas: cabeludo não entra. São uns chatos, são loucos, totalmente loucos, e perigosos. É assim que eles estão: doidos, malucos, loucos e perigosos. Ou não?

NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Max Limonad Ltda., 1982, p.199-200.

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