Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Mário Faustino

ODE

“Esta manhã o ar estava cheio de anjos”
e sua súbita beleza era quase invisível

A manhã era os mesmos e transparentes anjos
e seus frágeis caminhos eram quase visíveis

Agora é noite e um anjo desgarrado
debate-se impotente no pegajoso mar

Numa praia distante suas asas são algas
e misteriosamente a noite está deserta

Ouço o teu canto pobre anjo decaído
mas estou preso e o abutre me contempla

Por que amaldiçoas quem imortal te fez?
a manhã não tem culpa se não vem nunca mais

cheia de anjos indecisos caminhando
sem pés sobre os caminhos do ar

Por que o desespero alma esquecida?
É teu consolo o teres sido um anjo

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p.205.

Nota: é sempre bom não perder de vista as observações que Sérgio Alcides fez acerca desta edição da poesia de Mário Faustino (aqui).

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