Estrelado pela bela Audrey Tautou, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain tem, como apregoava aquela velha e boa propaganda, mil e uma utilidades: trata-se de um filme em que o espectador pode encontrar a fantasia que quiser. Em geral ele encontrará apenas as próprias, o que não deixa de reduzir o espectro do filme, amplo, como se disse. O filme tem como cenário o famoso bairro boêmio de Montmartre ― que rendeu o fraco musical Moulain Rouge, por exemplo, filme que entretanto traduziu com acuidade o que foi aquele ambiente, onde Amélie vive e trabalha, em local e funções bem distintas da infeliz protagonista do musical. Amélie é garçonete num café situado em Montmartre, e mora num prédio simples nas imediações: trata-se de uma visão de subúrbio, mas um subúrbio com requinte. Isso já dá uma boa ideia do filme, e muito de sua bizarrice pode ser entendida na intenção de trazer um outro Montmartre, uma outra Paris, onde o sonho se faz ao encontro do insólito, do inusitado. Como foi dito, o leque do filme é amplo, muitas são as entradas para o espectador. A minha foi: Amélie é alguém que fez da solidão da infância um passaporte delicado para um acesso ao mundo via detalhe, aquilo que quase ninguém vê. Ao se permitir o contato com o anonimato de outras solidões (e são muitas ao longo do filme), ela acaba encontrando o que pode doar de si ao outro. Bonito. E difícil. Gosto especialmente, além da figura de Amélie, do escritor fracassado que frequenta o café: nada mais francês que um escritor fracassado.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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