Ler não deixa de ser uma forma de viver vicariamente ― viver por procuração, em linguagem de dia de semana. Valendo-me da imagem do atoleiro proporcionada pelo esplêndido capítulo de O jogo da amarelinha em que Heráclito comparece, a personagem se deixa atolar no lugar do leitor, curando-o da hidropsia sem a radicalidade do método de Heráclito, que afinal curou-se porque morreu. Mas, supremo paradoxo, a melhor ficção que se pode ler/viver não deixa de lembrar ao leitor que os atoleiros em que se meteu, inclusive aqueles que ousou chamar de vida, não passaram de uma ficção barata e de mau gosto. O nosso Horacio, colocando seu hagá hem quase tudo, não deixa de ter hum portenho har de nobreza. Parodiando-o (ou odiando-o, pela inveja meta-física), quando ele diz, em conversa com a Maga, que seus perigos são apenas metafísicos, também se poderia pensar que, ao ler, o que o leitor experimenta são atoleiros metafísicos, dos quais a obra pode ou não içá-lo, dependendo de como lê ― e O jogo da amarelinha é fantástico a este respeito, pois deixa o leitor “livre” para escolher o percurso de leitura que melhor lhe aprouver. Mas, de fato, eu nunca olhei através de um caleidoscópio, talvez eu tenha me atolado só pela metade.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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