Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 9 de outubro de 2011

hidropsia

Ler não deixa de ser uma forma de viver vicariamente ― viver por procuração, em linguagem de dia de semana. Valendo-me da imagem do atoleiro proporcionada pelo esplêndido capítulo de O jogo da amarelinha em que Heráclito comparece, a personagem se deixa atolar no lugar do leitor, curando-o da hidropsia sem a radicalidade do método de Heráclito, que afinal curou-se porque morreu. Mas, supremo paradoxo, a melhor ficção que se pode ler/viver não deixa de lembrar ao leitor que os atoleiros em que se meteu, inclusive aqueles que ousou chamar de vida, não passaram de uma ficção barata e de mau gosto. O nosso Horacio, colocando seu hagá hem quase tudo, não deixa de ter hum portenho har de nobreza. Parodiando-o (ou odiando-o, pela inveja meta-física), quando ele diz, em conversa com a Maga, que seus perigos são apenas metafísicos, também se poderia pensar que, ao ler, o que o leitor experimenta são atoleiros metafísicos, dos quais a obra pode ou não içá-lo, dependendo de como lê ― e O jogo da amarelinha é fantástico a este respeito, pois deixa o leitor “livre” para escolher o percurso de leitura que melhor lhe aprouver. Mas, de fato, eu nunca olhei através de um caleidoscópio, talvez eu tenha me atolado só pela metade. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário