Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Rainer Maria Rilke, Mário Faustino, Manuel Bandeira, a poesia

TORSO ARCAICO DE APOLO

Não conhecemos a sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo ergue-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros
E não tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para além de todas as suas fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: precisas mudar de vida.


FAUSTINO, Mário. Poesia completa e traduzida. Org. Benedito Nunes. São Paulo: Max Limonard, 1985, p.262-263. O mesmo poema, na tradução de Manuel Bandeira:

TORSO ARCAICO DE APOLO

Não sabemos como era a cabaça, que falta,
De pupilas amadurecidas, porém
O torso arde ainda como um candelabro e tem,
Só que meio apagada, a luz do olhar, que salta

E brilha. Se não fosse assim, a curva rara
Do peito não deslumbraria, nem achar
Caminho poderia um sorriso e baixar
Da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
Pedra, um desfigurado mármore, e nem já
Resplandeceria mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida
Como uma estrela; pois ali ponto não há
Que não te mire. Força é mudares de vida.


BANDEIRA, Manuel. Alguns poemas traduzidos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007, p.36.

***
― Certo. Trata-se aqui, sobretudo, daquele aprofundamento provocado por toda obra de arte no ser que a considera, que a revive. A poesia trágica, sobretudo, mas também qualquer outra forma de poesia absoluta ― e, quanto mais intenso o poema, mais forte será, neste sentido, seu impacto sobre o ser que o recebe ― provocam na alma sobre que agem uma espécie de catarse, uma purgação, uma purificação. Aquele que verdadeiramente vive um poema, imediatamente, por mais que disso não se dê conta, muda de vida.
― Como quem vê o “torso arcaico de Apolo”?
― Precisamente: “Du must dein Leben aendern”, diz toda aquela obra-prima a quem, contemplando-a, por ela e nela morre e ressuscita. Toda grande poesia [...] relembra ao homem sua grandeza, seu alto destino. Recorda, igualmente, a quem vive, a seriedade, a importância da vida.”


FAUSTINO, Mário. Para que poesia? __. Poesia-experiência. São Paulo: Perspectiva, 1976, p.29-30.

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