Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Julio Cortázar: doppelgänger

― ... Por sua vez, não pode negar que nunca esteve tão acordado como agora. E quando digo acordado, você me entende, não é?
― Pergunto-me se não será o contrário, meu velho.
― Oh, essas são soluções fáceis, contos fantásticos para antologias. Se você fosse capaz de ver a coisa pelo outro lado, talvez já não quisesse sair dessa cadeira. Se você saísse do território, digamos da casa um para a dois, ou da dois para a três... É tão difícil, doppelgänger, eu passei toda a noite tentando e só consegui chegar à casa oito. Todos gostaríamos de alcançar o reino milenário, uma espécie de Arcádia onde, talvez, fôssemos mais infelizes do que aqui, porque não se trata de felicidade, doppelgänger, mas onde não mais haveria este imundo jogo de substituições que nos ocupa durante cinquenta ou sessenta anos, e onde nos daríamos verdadeiramente a mão, em vez de repetir o gesto do medo e querer saber se o outro leva uma faca escondida entre os dedos. Falando de substituições, não estranharia que você e eu fôssemos o mesmo, um de cada lado. Como você disse que sou vaidoso, parece que escolhi o lado mais favorável, mas quem sabe, Manú. Só sei uma coisa: é que não posso estar do seu lado, tudo quebra nas minhas mãos, faço cada barbaridade de enlouquecer, supondo que fosse assim tão fácil. Mas você, que está em harmonia com o território, não quer entender estes ires-e-vires, dou um empurrão e acontece-me alguma coisa, então cinco mil anos de genes jogados fora me atiram para trás e volto a cair no território, chapinho duas semanas, dois anos, quinze anos... Um dia meto um dedo no costume e é incrível como o dedo se afunda no costume e parece do outro lado, parece que vou chagar finalmente à última casa e, de repente, uma mulher se afoga, imagine, ou tenho um ataque, um ataque de piedade pelo divino botão, porque isso de piedade... Já lhe falei das substituições, não? Que imundície, Manú! Consulte Dostoievski sobre isso das substituições. Por fim, cinco mil anos me atiram outra vez para trás e tenho de voltar a começar. Por isso sinto que você é o meu doppelgänger, porque todo o tempo estou indo e vindo do seu território para o meu, se é que consigo chegar ao meu, e nessas lastimáveis passagens parece-me que você é a minha forma que fica aí, olhando-me com piedade, você é os cinco mil anos do homem amontoados em um metro e setenta, olhando para este palhaço que deseja sair da sua casa. Tenho dito.


CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.401-403.

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