APRENDER A VIVER
“Pudesse eu um dia escrever uma espécie de tratado sobre a culpa. Como descrevê-la, aquela que é irremissível, a que não se pode corrigir? Quando a sinto, ela é até fisicamente constrangedora: um punho fechando o peito, abaixo do pescoço: aí está ela, a culpa. A culpa? O erro, o pecado. Então o mundo passa a não ter refúgio possível. Aonde se vá e carrega-se a cruz pesada, de que não se pode falar.
Se se falar ― ela não será compreendida. Alguns dirão ― ‘mas todo o mundo...’ como forma de consolo. Outros negarão simplesmente que houve culpa. E os que entenderem abaixarão a cabeça também culpada. Ah, quisera eu ser dos entram numa igreja, aceitam a penitência e saem mais livres. Mas não sou dos que se libertam. A culpa em mim é algo tão vasto e tão enraizado que o melhor ainda é aprender a viver com ela, mesmo que tire o sabor do menor alimento: tudo sabe mesmo de longe a cinzas.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 206.
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