O que fazer?
Hoje. Nas ruas do centro, o sapato
novo esfolando o pé, e então reduzir os movimentos, encontrar uma farmácia,
comprar band-aid. Os pés machucados, andar devagar, mesmo com o band-aid, pisar
com cuidado. Nunca um sapato novo havia causado tanto desconforto em meus pés. Muito rápido o
incômodo nos pés manifestando-se e aumentando, 15 minutos perdidos no centro às
voltas com encontrar uma farmácia e comprar o band-aid, para colocar nos pontos
machucados do pé, na própria farmácia, encontrar um canto na farmácia porque não dava mais
para continuar andando.
Depois, devagar, seguir para o metrô
e chegar com 15 minutos de atraso na sessão de análise na zona sul, com a
sensação de dia desperdiçado e já pensando: mas era preciso mesmo ter comprado
aquele sapato? Não, não era. Foi comprado no impulso, atendendo vagamente à
necessidade de um sapato mais fechado para dias de chuva. No início da sessão,
o assunto foram os meus pés esfolados. Retirei os sapatos durante a sessão. Por
que o incômodo maior era tentar entender como um sapato que ficou tão confortável
na loja, no dia em que foi comprado, pôde, em sua primeira vez de uso, produzir
um desconforto tremendo, paralisante.
Sapato condenado, mas a sessão de
análise não. Como a dor gera desconforto espiritual! Finda a sessão, precisava voltar o mais depressa possível para casa, para aliviar o
incômodo nos pés.
Não sei quantas pessoas vi hoje
dormindo na calçada, mas a lembrança dos sapatos comprados impulsivamente fazia
com que eu me sentisse participando da lógica perversa e cruel que leva pessoas
a dormir em calçadas. A esfoladura nos pés me enchia de culpa por aquela
compra. Sempre tive poucos, bem poucos sapatos. E é claro, naturalmente, que um
dos meus impulsos, quando o incômodo se intensificou, foi tirar os sapatos e seguir o caminho descalça. Mas aí me
lembrava de imagens antigas que frequentavam minha noite, em que eu me apanhava
descalça em público, e isso equivalia a uma exposição constrangedora de minha pessoa. Era sempre ruim, porque eu
precisava me esconder do que experimentava, no sonho, como vergonha. Os sapatos vestem os pés
como a roupa veste o corpo.
Hoje, ao sentir os pés esfolados,
machucados, me desconcertei, perdi o rumo. Não me lembro mais em que parte da
cidade vi pessoas dormindo na calçada. No centro, certamente. Não sei o que
fazer quando as vejo, não sei se devo esquecer um tempo os sapatos ― e as lojas,
e o verbo comprar ― para tentar experimentar alguma forma de despojamento que me
traga a delicadeza perdida. Ou então esquecer o que tiver de ser esquecido, sem
abrir mão dos sapatos, para, quem sabe, renascer.
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