Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 15 de junho de 2011

colcha de retalhos

Minha mãe esteve aqui. Fez comida, fez-me companhia. Saiu pela manhã. Não me lembro da última vez que recebi beijo de mãe ao amanhecer, despedindo-se de mim. Sei que faz bastante tempo. Não consigo me esquecer que as colchas de retalho que ela costurou a vida inteira para nos proteger do frio (que não era tanto no ES) deram-me, no caos de um sonho, uma tela de Picasso. O que é muito diferente de ir ao museu ver uma tela de Picasso. Porque no sonho ela se fez necessidade, se impôs, ela foi criação, a tela que nunca vi, que talvez jamais tenha sido pintada, exceto naquele vislumbre onírico em que a discerni, no mesmo instante em que reconhecia o quarto de costura e os panos pendurados. Sua geometria esgarçou a colcha de retalhos cortados com certa exatidão, compondo aquele exótico painel multicor em que se reconheciam pedaços de vida, pelos tecidos que as pessoas compravam e levavam para que minha mãe transformasse em peças de roupas. Com as sobras, algo novo era tecido. Nos retalhos da colcha, retalhos de vidas que se encontravam apenas ali: um vestido para madrinha de casamento, um vestido para casar, um vestido novo, um vestido novo para a menina que um dia iria casar... Em quadrados, retângulos e triângulos, vidas tecidas, enquadradas na previsibilidade do nascer-crescer-morrer. Viver, se houvesse roupa nova.

Esgarçada a colcha de retalhos pelo sonho, que me deu tecidos em farrapos, entendo que minha mãe tentava também fazer arte: a colcha de retalhos era sua liberdade ante os modelos e cores e estampas previamente escolhidos. Minha liberdade é tentar tecer com as palavras o que pode quebrar a ordem dos acordes previstos, quem sabe fazer soar outra sílaba, outra música.

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