Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 12 de junho de 2011

Henrique Manuel Bento Fialho: o imponderável do amor

CONVITE

O ser convida-se a si 
próprio à terrível dança... 
Georges Bataille

Se eu soubesse dançar
convidava-te para um tango,
guiava-te nos labirintos do coração.
Voaríamos sobre os campos
como num desenho animado,
seríamos uma ameaça
à estabilidade nacional.

Se eu soubesse dançar
inventava-te um deus novo,
um deus que não temesse
o conhecimento do amor,
um deus que oferecesse à carne
o esplendoroso sangue
de um vulcão vivo.

Mas há o peso a urdir
o fim que vem do céu
para a terra e na terra
se funde com a morte.
E há as folhas das árvores
sem nome, lavadas pelo frio,
que alargam os braços
à medida do tronco do tempo,
abraçam-nos, dançam com o tempo
em tanto silêncio.

Sobre a terra continua a cair todo o céu.
E no entanto a respiração do mundo
atinge-nos como um estrépito,
também nós dançamos o tango silencioso,
nossos braços transformados em ramos,
nossos dedos como folhas pesadas.

E por dentro o sangue transforma-se-nos
numa resina crua, mágica,
um segredo sem negrume
revelando-se em todas as palavras
naturalmente proferidas,
um segredo sem negrume
revelando-se no olhar,
na respiração do mundo
dentro de nós suspirada.

Manuel Henrique Bento Fialho. A dança das feridas. Edição do autor. Portugal, 2011, p. 7-8.

O excelente livro A dança das feridas, composto por poemas cujo mote são relações amorosas sublinhadas pela história (conforme apresentado AQUI), distingue-se pela sutileza com que a pele dos casais encenados é transmutada em poesia. Destaco os poemas "Rainer Maria Rilke a Lou Andréas-Salomé", "Declaração" (lindíssimo), "Oscar Wilde a Lorde Alfred Douglas", "Sylvia Plath a Ted Hughes", "Sid Vicious a Nancy Spungen", "Henry Miller a Anaïs Nin", e o poema que fecha o livro, "Amor e Morte", de que transcrevo um verso: "A ruína não é coisa que se traga a tiracolo." Já o amor costuma dar ares novos a quem o experencia, afastando ilusoriamente a morte. O poema "Convite" abre o livro: convite à leitura, convite ao leitor para o teatro do amor, vivido nos recessos onde o ser se sabe mais íntimo, com o contraponto talvez de não saber muito bem o que, quem ou para o que está convidando. O livro pode ser adquirido diretamente com o poeta e escritor Henrique Fialho, que mantém o blog antologia do esquecimento.

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