Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 21 de outubro de 2011

mais um ditador

O progresso do capitalismo é de fato notável, e não há qualquer contradição nisso, afinal o progresso é a tônica que move este vitorioso sistema político e econômico: sem a noção de progresso e de tempo linear, cristã em princípio, o capitalismo não teria encontrado chão onde semear suas flores de aço. Como tal, não se pode esperar delas o mesmo papel reservado às flores na morte tradicionalmente vivenciada. O mais estranho em tudo continua sendo a confusão das versões, a eliminação, junto com o inimigo, de seu corpo, o sequestro dessa morte, que se entrevê, nas frinchas dos relatos, como tendo sido extremamente violenta, insuportavelmente violenta para quem dela participou ou vivenciou. Então é preciso explodir em felicidade, em comemoração ao novo ritual do morto sem corpo, explodido com a violência. O corpo desaparece, e o mais perverso de tudo é que o corpo sequestrado do ritual das antigas flores não permite que o ciclo se encerre: as flores de aço compareceram de tal forma na morte violenta que o horror de tudo esgarça de vez a possibilidade do ritual. Ou quem deixaria de ficar chocado com a imagem do ditador abatido flagrada por um celular? Quem sabe o tempo do progresso também traía uma circularidade ― ao contrário da tão propalada linearidade ― e estejamos vivendo uma coisa nova, uma retomada de etapas consideradas já superadas, em que a nova ritualização da morte não difere da barbárie, embora seja difícil aceitar isso, assim como aceitar que isso não vale só para ditadores, afinal as explicações dadas são as mesmíssimas para outras mortes que envolvem confrontos políticos violentos por territórios, vale dizer, por poder.

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