Era num outro tempo, numa outra encarnação... de mim mesma. Acabara de entrar nos vinte e poucos e numa crise sem precedentes, principalmente se se considerar que era fardo demais para quem tinha sido até então uma pessoa simples, na falta de termo melhor, perplexa de repente diante tudo, e com a experiência de apenas duas décadas de vida para se movimentar naquele novo mundo, que então era eu. Foi então que, num domingo de manhã (mas pode ter sido num sábado à tarde), eu me dirigi a uma das praças da cidade e me sentei num banco, para nada, ou melhor, como uma variante da problemática básica, então ainda com tintas suaves dos restos de inocência: mas que fiz eu? que fiz eu? Foi assim que ganhei uma oportunidade única: ouvir a confissão de um crime, ou quase isso. Um rapaz se aproximou e começou a conversar comigo, a falar aleatoriamente. Hoje acharia isso espantoso, nessa vida corrida e desconfiada. Eu era quase feliz na minha perplexidade de criatura diante do incompreensível. Era magra, mais do que hoje, e quase não aparecia como corpo. Talvez daí a sensação de leveza, e a confiança do rapaz, que falava, mais do que eu, que não me lembro mais o que falei. Lembro do que ouvi. No relato que me fez ― que precisava fazer, agora eu sei, a alguém anônimo e desconhecido, com quem ele nunca mais corresse o risco de encontrar ―, ele começou por dizer que era dono de uma oficina de automóveis e que tinha havido um acidente com morte, não sei se apenas uma. Acidente causado por uma falha no serviço que ele (ou sua equipe) fizera no carro ― isso ele sabia, hoje eu sei que ele sabia. Mas então, por estar tão mergulhada em minha própria perplexidade, acho que, porque mal ouvia o rapaz, tornava-me a escuta de que ele precisava. Pois ele não havia assumido a responsabilidade sobre o acidente. Mas falava dele ali comigo, falava de si, daquela culpa ― daquele crime? E então eu descobri que eu prestava para alguma coisa: para ouvir sem julgar. O rapaz terminou sua palestra, despediu-se de mim e foi embora, na certa desejoso de nunca mais tornar a me ver, pois havia alguém no mundo, uma desconhecida, a quem ele confessara uma grande culpa. Para não constrangê-lo, eu apenas sorri e disse tchau. E tempos depois me mudei daquela cidade, que é minha por acidente de percurso. Não antes de ter lido isso: “Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente.” (“Perdoando Deus”, Clarice Lispector).
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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