Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 5 de fevereiro de 2012

o inominável

A trama dos sonhos, no sentido daquilo que os constitui e não necessariamente algum ou qualquer esboço redutível à linguagem ― pois que são matéria avessa ao discurso ―, sua trama, prosseguindo, às vezes encontra ecos (para falar junto com a ninfa Eco e seu obscuro amante Narciso) na trama da vida, esta mais palpável. Foi assim: encontrava-me a passear os olhos pelo livro de Manuel António Pina (Poesia, saudade da prosa) quando esbarrei nos versos:

Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: “Que fez algum
poeta por este senhor?” E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive de voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
(“A poesia vai”, p.60)

Num primeiro momento achei qualquer coisa de presunçoso e banal, como se a poesia fosse a luz que faltasse ao “senhor míope”, e me esquivei do poema. Mas depois rearranjei, pois o verso anterior mencionava "repartição pública", e o senhor míope atendendo devagar ao balcão tomou a forma de funcionário público, e tudo mudou de cores, para cinza, digamos assim. Lembrei-me de um conto imperdível de Osman Lins, “Noivado” (Nove, novena: narrativas), em que insetos... (vale deixar o suspense), e tantos outros exemplos focalizando funcionários públicos na literatura brasileira. E mais: no excerto do poema, a pergunta incide sobre os poetas... De forma que, pelo desconforto, fui em busca de outro poema com que estrear o livro citado de Manuel António Pina no blog, e postei o que se lê aqui. Então, quando digitava os versos seguintes, “para poder ver o início / da sua queda caótica”, detive-me em espanto de susto, pois naquele momento (era pela manhã, circunstância importante para o que se seguiu) vieram-me de chofre as imagens perturbadoras, para dizer o mínimo, que tinham povoado a parte que chegou até mim dos sonhos da noite anterior, e que de tão fortes e incômodas eu certamente havia censurado. Imagens que me fizeram suspender no ato a digitação do texto e tentar me situar naquele outro universo, no que ele trazia de medo e ameaça. E de perversidade também, não sei de quê ou de quem, mas era um sonho de desamor, para o caso de resumi-lo numa palavra. Nele deslizavam imagens minhas misturadas a muitas cenas e diálogos recentes, mas o que nele se condensava, num triângulo conhecido e misterioso, ainda vai me ocupar por um bom tempo. 

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