MITO
Os cães do sono ladram
Mas dorme a caravana do meu ser;
Ser em forma de pássaro,
Sonora envergadura
Ruflando asas de ferro sobre o fim
Dos êxtases do espaço,
Cantando um canto de aço nos pomares
Onde o tempo não treme,
Onde frutos mecânicos
Rolam sobre sepulcros sem cadáver;
E sonho outros planaltos
Por mim sobrevoados na procela;
E sonho outras legendas
Em mim argamassadas pelo vento,
Trabalhadas em mim por mãos sem tato;
E sonho o que foi parco
Mas meu e por que raro perdido;
E sonho o que foi vasto
Mas de alheio me pesa sobre os ombros,
Globo de ásperos polos,
Continentes de medo
E mares onde o sangue é trilha e nódoa;
Deitado no vitral
Da noite intensa, exata,
Assim um Fazedor empunha o cetro
Ornado de serpentes;
Assim refaz o que foi feito à sua
Augusta semelhança
Contrafação de um gesto mais difícil
Sonâmbulo e remoto ― contundente;
E enquanto nuvens quedam
De incenso carregadas, de semente,
Levanto-me e estrangulo
O ato de nascer que me divide
Em morna derrisão
Disforme difidência de um presságio;
O Fazedor anula
O inferno que o refina
E alçando-se ao poente mais seguro
Mergulha na verdade
Acesa que o derrota e reduz ao
Dormente ser de vidro e cor que sonha;
Os cães do sono calam
E cai da caravana um corpo alado
E o verbo ruge em plena
Madrugada cruel de um albatroz
Zombado pelo sol ―
FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p.77-78.
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