Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 7 de julho de 2011

recusa

Acabo de receber em casa o livro Poesia da recusa, projeto de Augusto de Campos de tradução de certa estirpe de poetas/poemas que o tradutor assim apresenta: “Em defesa de Mallarmé, afirmou Valéry, certa vez, que o trabalho severo, em literatura, se manifesta e se opera por meio de recusas (...) A melhor poesia que se praticou em nosso tempo passou por esse crivo.” (p.16). Cansa, antes mesmo de começar a conferir o volume, esta pomposa declaração de princípios: não informa nada que não já se saiba. Dou uma passada de olho, detenho-me em Hart Crane, a quem Mário Faustino teria homenageado em sua Balada (cuja dedicatória é ainda matéria de controvérsia) e me deparo com isso: “Em 1956, Faustino traduziu dois poemas de Crane, ‘Praise for na Urn’ e ‘Garden Abstract’. Não são, porém, traduções criativas. Antes, versões quase literais, de cunho didático, para a sua ‘Página-Experiência’ no Suplemento Literário do Jornal do Brasil.” (p.294). É cômodo desqualificar o trabalho de quem não está mais aqui para se defender... Só há um porém: a tradução de Mário Faustino pareceu-me mais bonita, entre outros porque primeiro me trouxe o poema em seu frescor e novidade. Traduções são traduções ― disse-me alguém versado, e em versos versado, na questão ― cada uma atende uma demanda própria ― desde que recubra o que cabe na palavra tradução. Há várias possibilidades de recusa. Pode-se pensar que não há literatura ou poesia fora do espectro que recobre a palavra recusa ― de quê? O leitor também costuma ter suas recusas, nem sempre é fácil contorná-las, mas se elas encontram expressão na arte, isso pode sinalizar que não há uma poesia da recusa pairando acima das contingências que a ensejaram: porque uma hora vai sempre aparecer alguém que necessita dela. Na palavra recusa está pressuposta a palavra escolha: escolhemos os poetas que amamos; traduzir é escolher. Se Dylan Thomas nasceu falando uma língua diferente da minha, isso não impede que sinta necessidade de sua poesia. Aí vem sempre alguém lembrar, pelo menos aqui no Brasil, que a melhor leitura é a que se faz no original, que poesia não se traduz (cansei de ouvir isso nos eventos de que participei na Universidade), que as traduções que pratica "procuram preservar as características formais do original. São, nesse sentido, estudos de dicção e estilo. Mas o meu lema é oferecer ao público somente poemas que efetivamente continuem poemas depois de traduzidos. Daí a necessidade de captar, além da sua forma, a sua 'alma', o que traz para o tradutor o problema de identificar-se com o texto e abdicar de uma programação inteiramente premeditada." (p.17). E traz para o leitor uma enorme sensação de incompetência, para qualquer coisa, inclusive ler poesia. Será preciso lembrar tanto a própria erudição para alcançar a vontade de poesia do outro? Um poema que não continue poema depois de traduzido foi bem traduzido? É passível de tradução? Não sei responder a estas questões. O que sei é que se há quem se proponha a traduzir é porque existe, na outra ponta, a demanda de leitura. E se as melhores traduções, as mais desejadas, são ainda as bilingues, é porque o leitor quer, por ele mesmo, quando pode, fazer a comparação. A título de, segue a versão que Augusto de Campos propôs para o poema de Hart Crane:

JARDIM ABSTRATO

A maçã no seu galho é tudo o que ela quer, ―
Suspensão cintilante, mímica do sol.
O ramo arrebatou-lhe o sopro, e sua voz,
mudamente cingida aos declives e alturas
De ramo a ramo acima, turva-lhe a visão,
Prisioneira da árvore e seus dedos verdes.

E ela se sonha enfim a própria árvore.
O vento, que a possui, tece-lhe as veias jovens,
Retendo-a para o céu e seu rápido azul,
E afoga a febre de suas mãos no sol.
Ela não tem memória, medo ou esperança
Além da grama e sombras a seus pés.

CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.300-301.

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