Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Murilo Mendes

Janela do caos

1

Tudo se passa
Num Egito de corredores aéreos.
Numa galeria sem lâmpadas
À espera de que Alguém
Desfira o violoncelo
― Ou teu coração?
Azul de guerra.

2

Telefonam embrulhos,
Telefonam lamentos,
Inúteis encontros,
Bocejos e remorsos.

Ah! Quem telefonaria o consolo,
O puro orvalho
E a carruagem de cristal.

3

Tu não carregaste pianos
Nem carregaste pedras,
Mas na tua alma subsiste

― Ninguém se recorda
E as praias antecedentes ouviram ―
O canto dos carregadores de pianos,
O canto dos carregadores de pedras.

4

O céu cai das pombas.
Ecos de uma banda de música
Voam da casa dos expostos.

Não serás antepassado
Porque não tiveste filhos:
Sempre serás futuro para os poetas.
Ao longe o mar reduzido
Balindo inocente.

5

Harmonia do terror
Quando a alma destrói o perdão
E o ciclo das flores se fecha
No particular e no geral:
Nenhum som de flauta,
Nem mesmo um templo grego
Sobre colina azul
Decidiria o gesto recuperador.

Fome, litoral sem coros,
Duro plano da morte.
A terra abre-se em sangue,
Abandona o branco Abel
Oculto de Deus.

6

A infância vem da eternidade.
Depois só a morte magnífica
― Destruição da mordaça:

E talvez já a tivesses entrevisto
Quando brincavas com o pião
Ou quando desmontaste o besouro.

Entre duas eternidades
Balançam-se espantosas
Fome de amor e a música:
Rude doçura,
Última passagem livre.

Só vemos o céu pelo avesso.

7

Cai das sombras da pirâmide
Esse desejo de obscuridade.
Enigma, inocência, bárbara,
Pássaros galopando elementos.
Do fundo do céu
Irrompem nuvens equestres.
Onde estão os braços comunicantes
E os pára-quedistas da justiça?
Vultos encouraçados presidem
À sabotagem das harpas.

8

Que esperam todos?
O vento dos crimes noturnos
Destrói augustas colheitas
Águas ásperas bravias
Fertilizam os cemitérios.
As mães despejam do ventre
Os fantasmas de outra guerra.

Nenhum sinal de aliança
Sobre a mesa aniquilada.

Ondas de púrpura,
Levantai-vos do homem.

9

Penacho da alma,
Antiga tradição futura:
?Se a alma não tem penacho
Resiste ao Destruidor?

10

A velocidade se opõe
À nudez essencial.
Para merecer o rompimento dos Selos
É preciso trabalhar o coroa de espinhos,
Senão te abandonam por aí,
Sozinho, com os cadáveres de teus livros.

11

Pêndulo que marcas o compasso
Do desengano e solidão,
Cede o lugar aos tubos do órgão soberano
Que ultrapassa o tempo:
Pulsação da humanidade
Que desde a origem até o fim
Procura entre tédios e lágrimas.
Pela carne miserável,
Entre colares de sangue,
Entre incertezas e abismos,
Entre fadiga e prazer.
A bem-aventurança.
Além dos mares, além dos ares,
Desde as origens até o fim,
Além das lutas, embaladores,
Coros serenos de vozes mistas,
De funda esperança de branca harmonia
Subindo vão.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.436-439. 

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