Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 11 de dezembro de 2010

A queda do humano: acerca de "O leitor" (Stephen Daldry)

Assisti a três filmes, A queda (2004), Um homem bom (2008) e O leitor (2008), este o melhor e mais bem pensado deles (do mesmo diretor de As horas), que supostamente estariam mostrando um outro lado do nazismo, seu lado humano, no modo ingênuo e de certa forma inocente com que pessoas ditas comuns se envolveram no projeto macabro de Hitler. O leitor é um filme muito bem pensado. Quem sabe por isso o núcleo opaco do enigma escapa ao personagem masculino. A personagem Hanna, em excelente interpretação de Kate Winslet, é o grande enigma do adolescente apaixonado, do jovem estudante de Direito e, por fim, do homem desencantado, na sequência um pouco óbvia das fases da vida. Ela é o enigma que escapa ao leitor iluminista, informado pela razão e imbuído das melhores intenções. Já na condição de ré, no tribunal, diante do juiz que questiona suas ações de algoz nazista, Hanna rebate (cito de memória): e o que o senhor teria feito se estivesse no meu lugar? Como a dizer: eu estava cumprindo ordens. Boas intenções fracassam, por exemplo ao se perceber o uso político das ilusões das pessoas, seja de que ordem for. O melhor da literatura moderna (penso principalmente na romanesca) mostra que para além (ou aquém) da cultura subsistem questões da mais alta relevância, como os fins da instrução. O leitor é, finalmente, o fracasso da leitura que confia apenas nos próprios recursos, na letra. Fascinado pela mulher enigmática, o adolescente lê de modo apaixonado para ela, mas não consegue ler o óbvio. É como se a geração que cresceu sob o nazismo, diante do silêncio quase absoluto de seus pais, estivesse finalmente devolvendo para eles: toda a riqueza de nossa cultura, todos os nossos livros não foram bastante para que enxergássemos o que estava diante de nossos olhos, menos ainda, o que é pior, para impedir o horror. Horrorizado diante do que descobre, o homem descobre também que sua vida é um enigma. Persiste o núcleo opaco, resistente às suas tentativas de entendimento e penetração. Então a literatura surge como um sucedâneo que aplaca a angústia de não entender o enigma da própria vida. Uma pergunta decisiva na vida de todo mundo poderia ser: onde estarei daqui a 10 anos?


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