Assisti a três filmes, A queda (2004), Um homem bom (2008) e O leitor (2008), este o melhor e mais bem pensado deles (do mesmo diretor de As horas), que supostamente estariam mostrando um outro lado do nazismo, seu lado humano, no modo ingênuo e de certa forma inocente com que pessoas ditas comuns se envolveram no projeto macabro de Hitler. O leitor é um filme muito bem pensado. Quem sabe por isso o núcleo opaco do enigma escapa ao personagem masculino. A personagem Hanna, em excelente interpretação de Kate Winslet, é o grande enigma do adolescente apaixonado, do jovem estudante de Direito e, por fim, do homem desencantado, na sequência um pouco óbvia das fases da vida. Ela é o enigma que escapa ao leitor iluminista, informado pela razão e imbuído das melhores intenções. Já na condição de ré, no tribunal, diante do juiz que questiona suas ações de algoz nazista, Hanna rebate (cito de memória): e o que o senhor teria feito se estivesse no meu lugar? Como a dizer: eu estava cumprindo ordens. Boas intenções fracassam, por exemplo ao se perceber o uso político das ilusões das pessoas, seja de que ordem for. O melhor da literatura moderna (penso principalmente na romanesca) mostra que para além (ou aquém) da cultura subsistem questões da mais alta relevância, como os fins da instrução. O leitor é, finalmente, o fracasso da leitura que confia apenas nos próprios recursos, na letra. Fascinado pela mulher enigmática, o adolescente lê de modo apaixonado para ela, mas não consegue ler o óbvio. É como se a geração que cresceu sob o nazismo, diante do silêncio quase absoluto de seus pais, estivesse finalmente devolvendo para eles: toda a riqueza de nossa cultura, todos os nossos livros não foram bastante para que enxergássemos o que estava diante de nossos olhos, menos ainda, o que é pior, para impedir o horror. Horrorizado diante do que descobre, o homem descobre também que sua vida é um enigma. Persiste o núcleo opaco, resistente às suas tentativas de entendimento e penetração. Então a literatura surge como um sucedâneo que aplaca a angústia de não entender o enigma da própria vida. Uma pergunta decisiva na vida de todo mundo poderia ser: onde estarei daqui a 10 anos?
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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