Blindness, de Fernando Meirelles, segue de perto o livro de José Saramago. Contudo, ele é a radicalização metafórica do livro, já em si problemática, pois a multidão de cegos, no livro, potencializa o grotesco, não como monstruosidade, mas como contingência. No filme, Fernando Meirelles faz algo análogo ao que tinha feito em Cidade de Deus, conforme a análise de João César de Castro Rocha: na escolha do ponto de vista, teria ocorrido uma mudança drástica, e dificilmente inócua, do foco narrativo na transposição do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, para as telas:
“Ora, qual o ponto de vista narrativo do filme Cidade de Deus? Em lugar de um narrador difuso e deliberadamente ambíguo, optou-se pela determinação do foco narrativo em primeira pessoa, atribuído ao adolescente Buscapé. No filme, ele parece ter dois problemas principais: perder a virgindade e deixar a favela graças a um possível emprego como fotógrafo. Essa extraordinária simplificação da personagem corresponde a um propósito duplo: tanto torna o horror da história mais palatável, por acrescentar uma dose de comédia, quanto associa o desejo do espectador de distanciar-se da realidade ao objetivo do rapaz de abandonar a Cidade de Deus. Ao mesmo tempo, no tocante à audiência internacional, a história da ‘primeira noite de um homem’ permite uma rápida associação com um clichê narrativo explorado à exaustão pelo cinema holywoodiano. Portanto, a escolha do foco narrativo é reveladora. A perspectiva de Buscapé estabelece uma série de mediações entre o espectador e as causas da violência: o ponto de vista do fotógrafo, a própria câmera; o desejo de Buscapé de escapar da verdadeira favela da Cidade de Deus. Esses vários filtros tornam a insuportável realidade da comunidade dominada pelo tráfico de drogas em material para um espetáculo dinâmico, inegavelmente divertido e muito bem feito. Assim, o voyeurismo de Buscapé, fotógrafo da própria comunidade, legitima nosso papel de voyeurs da miséria alheia. Se o foco narrativo do filme tivesse sido o de Zé Pequeno, o público teria louvado o filme Cidade de Deus? Como poderíamos, audiências de outras classes sociais, identificarmo-nos com o ponto de vista do criminoso ‘impiedoso’? A brutalidade sem mediações de Zé Pequeno relembra o ódio do ‘cobrador’, o personagem homônimo do conto merecidamente célebre de Rubem Fonseca." (AQUI)
No caso da transposição para o cinema do romance de Saramago, ocorreu um processo similar: apenas no final há a ilusão de uma voz narrativa em 3ª pessoa. Durante toda a epidemia o ponto de vista implícito, conspícuo e predominante é o da mulher que enxerga, portanto o da visão, o que atenua em parte o impacto do grotesco apresentado (e sublimado, diga-se). Tem-se uma visão sobre a cegueira, e não da cegueira, por mais paradoxal que isso possa soar. Com isso, o filme não consegue sair da metáfora (o que por seu turno é confortável), mas o espectador sai do cinema. Uma estudiosa já disse que a narrativa ficcional é “visão e cegueira”, sugerindo as limitações do ponto de vista da narrativa. No entanto, no plano metafórico, é de outra cegueira que se trata, muito provavelmente associada a questões de percepção, com muitas possibilidades a explorar. O filme Blindness coloca efetivamente os limites da percepção em foco? Não, porque o espectador confia na luz que está ali à mão, e que pode guiar. Nenhuma angústia, nenhuma possibilidade aberta em relação à opacidade do mundo.
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