Diz um funcionário a outro do supermercado, em tom de humor, enquanto repunham o estoque, arrumando prateleiras que novos consumidores, no dia seguinte, iriam bagunçar (já passava das dez da noite):
― Fui criado no esgoto. Vou lá ter medo de rato?
Falavam de questões relativas ao lugar onde moram, pelo visto difíceis. Como a enfatizar sua convicção, o rapaz repetiu a sentença que lhe dava súbita força: “Fui criado no esgoto”. Mais não ouvi, ia em direção ao caixa. Nunca imaginei um dia ouvir alguém se referindo a si nestes termos, não obstante ter frequentado certos becos e subsolos literários ― necessário citar Graciliano Ramos e Luiz Ruffato? É preciso, aqui, tomar cuidado com o que se diz, há o risco de melindrar suscetibilidades muito aferradas ao texto literário: presenciar é diferente de ler, traz uma estranha confirmação. Alguma coisa sempre me deteve de avançar na leitura de Os ratos, de Dyonélio Machado (ou será que li e me esqueci?). O rapaz que proferiu esta frase pertence a uma nova categoria de pobreza, aquela que se imuniza (pelo antídoto dado pelo esgoto) contra os ratos. Enquanto isso, a propaganda oficial faz voo panorâmico sobre a cidade, maquiando-a às pressas para os mega eventos esportivos que irá abrigar em 2014 e 2016, a par do surto da vertiginosa valorização imobiliária. A imagem de união, limpeza e organização não resiste à explosão dos bueiros ― há coisas demais sendo abafadas pelo discurso ordeiro.
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