Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 23 de julho de 2011

ratos

Diz um funcionário a outro do supermercado, em tom de humor, enquanto repunham o estoque, arrumando prateleiras que novos consumidores, no dia seguinte, iriam bagunçar (já passava das dez da noite):
― Fui criado no esgoto. Vou lá ter medo de rato?
Falavam de questões relativas ao lugar onde moram, pelo visto difíceis. Como a enfatizar sua convicção, o rapaz repetiu a sentença que lhe dava súbita força: “Fui criado no esgoto”. Mais não ouvi, ia em direção ao caixa. Nunca imaginei um dia ouvir alguém se referindo a si nestes termos, não obstante ter frequentado certos becos e subsolos literários  necessário citar Graciliano Ramos e Luiz Ruffato? É preciso, aqui, tomar cuidado com o que se diz, há o risco de melindrar suscetibilidades muito aferradas ao texto literário: presenciar é diferente de ler, traz uma estranha confirmação. Alguma coisa sempre me deteve de avançar na leitura de Os ratos, de Dyonélio Machado (ou será que li e me esqueci?). O rapaz que proferiu esta frase pertence a uma nova categoria de pobreza, aquela que se imuniza (pelo antídoto dado pelo esgoto) contra os ratos. Enquanto isso, a propaganda oficial faz voo panorâmico sobre a cidade, maquiando-a às pressas para os mega eventos esportivos que irá abrigar em 2014 e 2016, a par do surto da vertiginosa valorização imobiliária. A imagem de união, limpeza e organização não resiste à explosão dos bueiros ― há coisas demais sendo abafadas pelo discurso ordeiro. 

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