Logo no início de S. Bernardo, Paulo Honório, reconhecendo suas limitações para narrar, afirma: "Ora vejam. Se eu possuísse metade da instrução de Madalena, encoivarava isto brincando. Reconheço finalmente que aquela papelada tinha algum préstimo." (Graciliano Ramos. S. Bernardo. 83. ed. Rio de Janeiro: Record, p.12).
Olhando ao redor a papelada espalhada pela minha casa, reconheço que tive mais sorte que Madalena: ela viveu sob o mando do coronelismo no interior do Brasil, no tempo da República Velha, e o suicídio foi a única saída que encontrou para se livrar de um marido doentio e ensandecido pelo ciúme; eu cresci sob o mando do autoritarismo paterno e militar, parte no interior, parte na cidade, durante os anos de chumbo da ditadura, e por pouco, mas muito pouco mesmo, não entro em um casamento que significaria, senão a morte como a experimentou Madalena, certamente minha ruína pela mutilação dos sonhos e do meu potencial de viver. Até hoje não sei que milagre foi aquele, que me salvou de um destino que poderia ser muito ingrato, mas é certo que houve um milagre. Creio que tinha 18 anos recém-completos, e embora na aparência e nos modos eu fosse pouco mais que uma roceira, meu rio subterrâneo estava o tempo todo em ação.
Pois bem. A papelada continua aqui, mas às vezes ela me parece uma casquinha, uma espécie de verniz de cultura. Sou normalmente polida, trato as pessoas com gentileza e educação, contando com a reciprocidade, é certo. Quando esta não vem, é questão de um simples bye, bye, baby: a vida é preciosa demais para ser desperdiçada com quem admite o desrespeito ao outro como parte do ritual em sociedade. De forma nenhuma. Nesses casos, eu faço questão de lembrar à criatura a existência da papelada, o quanto de sacrifício ela custou, algo que Paulo Honório nunca conseguiu enxergar em Madalena, tal seu utilitarismo capitalista, grosseiro e vulgar. Paulo Honório, evidentemente, aqui, é uma metáfora.
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