Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 25 de janeiro de 2011

polidez

Logo no início de S. Bernardo, Paulo Honório, reconhecendo suas limitações para narrar, afirma: "Ora vejam. Se eu possuísse metade da instrução de Madalena, encoivarava isto brincando. Reconheço finalmente que aquela papelada tinha algum préstimo." (Graciliano Ramos. S. Bernardo. 83. ed. Rio de Janeiro: Record, p.12).

Olhando ao redor a papelada espalhada pela minha casa, reconheço que tive mais sorte que Madalena: ela viveu sob o mando do coronelismo no interior do Brasil, no tempo da República Velha, e o suicídio foi a única saída que encontrou para se livrar de um marido doentio e ensandecido pelo ciúme; eu cresci sob o mando do autoritarismo paterno e militar, parte no interior, parte na cidade, durante os anos de chumbo da ditadura, e por pouco, mas muito pouco mesmo, não entro em um casamento que significaria, senão a morte como a experimentou Madalena, certamente minha ruína pela mutilação dos sonhos e do meu potencial de viver. Até hoje não sei que milagre foi aquele, que me salvou de um destino que poderia ser muito ingrato, mas é certo que houve um milagre. Creio que tinha 18 anos recém-completos, e embora na aparência e nos modos eu fosse pouco mais que uma roceira, meu rio subterrâneo estava o tempo todo em ação.

Pois bem. A papelada continua aqui, mas às vezes ela me parece uma casquinha, uma espécie de verniz de cultura. Sou normalmente polida, trato as pessoas com gentileza e educação, contando com a reciprocidade, é certo. Quando esta não vem, é questão de um simples bye, bye, baby: a vida é preciosa demais para ser desperdiçada com quem admite o desrespeito ao outro como parte do ritual em sociedade. De forma nenhuma. Nesses casos, eu faço questão de lembrar à criatura a existência da papelada, o quanto de sacrifício ela custou, algo que Paulo Honório nunca conseguiu enxergar em Madalena, tal seu utilitarismo capitalista, grosseiro e vulgar. Paulo Honório, evidentemente, aqui, é uma metáfora.

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