Contam de Murilo Mendes que um dia ele ia passando
com um amigo por uma rua de Botafogo quando viu uma mulher na janela de um
sobrado. Deu uma coisa no poeta, ele se deteve na calçada fronteira, ergueu o
braço e gritou:
― Meus parabéns, minha
senhora. Está uma coisa belíssima! Mulher na janela! Há muito tempo não se via!
Está belíssimo!
A senhora, assustada,
fechou a janela bruscamente, achando que estava diante de um louco. Mas o poeta
prosseguiu seu caminho com o sentimento do dever cumprido.
Também contam que um
bêbado ia pela rua e um enorme jacaré ia atrás dele. Cada vez que o homem
entrava em um bar o jacaré gritava: bêbado! Quando o homem saía de um bar para
entrar em outro, o jacaré gritava outra vez: bêbado! Até que uma hora o homem
perdeu a paciência, agarrou o jacaré pelos queixos e o virou pelo avesso,
jogando-o a um canto da calçada. Quando saiu do bar o jacaré lhe disse ―
odabeb! ― que é bêbado de trás para diante.
Há outras histórias, mas
penso nessa. Não matamos o nosso jacaré, nem nenhum outro bicho; apenas o que
fazemos é virá-lo pelo avesso, o que é lamentável, mas ineficiente. E a última
mulher na janela foi lá dentro atender ao telefone. Os prédios são altos e se
espreitam traiçoeiramente com binóculos na sombra. E como todo mundo tem mais o
que fazer, os poetas se tornam incômodos. Virá-los pelo avesso não é solução.
Eles não silenciam ― e você, que não entende os versos, pensa que ele não está
querendo dizer nada. Mas "se meu verso não deu certo foi teu ouvido que
entortou", disse um mestre. Os pintores também foram virados pelo avesso,
mas continuam a pintar tudo tão insistentemente que, vendo suas telas, uma
pessoa mal informada pode pensar que o mundo é que foi virado pelo avesso.
A classe burguesa levou
mais de um século para se abster, e não completamente, de ensinar moral aos
seus artistas. A classe proletária começa agora a impor sua moral, em outra
fútil e dolorosa campanha.
Deem-lhe tempo: ao fim de
algumas gerações ela obterá centenas de pintores condecorados e acatados,
músicos e poetas importantíssimos em suas academias ― mas nenhum artista. O
artista, virado pelo avesso, dirá apenas: odabeb. E muitos dos homens felizes
consigo mesmos e com sua vida ficarão desconfiados; e alguns ficarão pálidos.
Rio, abril de 1951.
BRAGA, Rubem. Para gostar de ler. Vol. 4. São Paulo:
Ática, 1994, p.72-73.
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