“Bem, mas o senhor dirá, deve de: no começo ― para pecados e artes, as pessoas ― como por que foi que tanto emendado começou? Ei, ei, aí todos esbarram. Compadre meu Quelemém, também. Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde do começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia ― que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado. Na fazenda O Limãozinho, de um meu amigo Vito Soziano, se assina desse almanaque grosso, de logogrifos e charadas e outras divididas matérias, todo ano vem. Em tanto, ponho primazia é na leitura proveitosa, vida de santo, virtudes e exemplos ― missionário esperto engambelando os índios, ou São Francisco de Assis, Santo Antônio, São Geraldo... Eu gosto muito de moral. Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho, aconselhar o justo. (...) Como é de são efeito, ajudo com meu querer acreditar. Mas nem sempre posso. O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre ― o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!”
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 30-31.
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