Numa aula para o 6º ano, a frase banal “disse ele com malícia” levou um aluno a ler (enxergar) milícia em vez de malícia. Trabalho na zona oeste, região fortemente dominada por milícias, estranhas organizações que ocuparam as brechas deixadas pelo Estado, que aliás nunca se importou mesmo com elas, inclusive deixando-as escandalosamente se alargarem, até o momento em que se viu desafiado. Um século de descaso, desde a belle époque, ia acabar mesmo nisso. Então, ao modo do filme de Victor Erice, O espírito da colmeia, na linguagem vão se desenhando os contornos daquilo que vai aos poucos se entranhando no cotidiano das pessoas, imperceptivelmente. E no cotidiano a linguagem vai desenhando novas cartografias.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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