Numa conversa de vinte anos trás sobre o filme A Insustentável Leveza do Ser ― quando estudava Biologia em Viçosa e meu ser começava já perigosamente a se adensar e querer algo mais que as incertezas da ciência ― e só hoje sei da coragem que tive de ter então, trocando tudo por um estranho nada, que depois frutificou ― prosseguindo: foi numa conversa de vinte anos atrás sobre um filme, agora percebo, que atentei pela primeira vez na crítica, empregando a palavra no sentido que hoje ela tem para mim. Comentei que a crítica não havia sido muito favorável ao filme ― o que, já então, devia constituir para mim um critério para escolher entre assistir ou não um filme etc., o que é mesmo espantoso ―, e uma moça que participava da conversa disse algo mais ou menos assim: e existe lá algum crítico que vai dizer que filmes devo assistir? Certamente a letra não é esta, mas o espírito sim. E se estou me lembrando disso agora, no horizonte do hoje, é porque, por mais independência que eu queira advogar para meu gosto, para minhas escolhas, tenho prestado demais atenção a certas prescrições, aquelas que vêm dizer como deve ser o gosto de alguém. Que alguém é este? Que subjetividade se deseja produzir por qualquer prescrição de gosto?
Tudo isso é bastante problemático, porque certamente faço o mesmo quando considero de qualidade duvidosa o gosto de outrem. Qual seria o parâmetro quando as escolhas já chegam feitas/filtradas até mim, e eu finjo ser livre e dizer “sim” ou “não”? Porque há a crítica formal e a informal, e nas conversas informais, espontâneas, entre os amigos, também há, quase imperceptível, certa prescrição de gosto, com a qual se desenham as afinidades (e Terry Eagleton fala isso no capítulo introdutório de Ideologia da estética) e se constroem os laços. Quantas vezes já se ouviu a expressão as afinidades eletivas? “O que está em questão é [...] a produção de um tipo inteiramente novo de sujeito humano ― um que, como a obra de arte, descobre a lei na profundeza de sua própria identidade livre, e não em algum poder externo opressor.” (EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Tradução Mauro Sá Rego Costa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, p.21).
No dizer de Eagleton, o elemento estético decorre, e ao mesmo tempo reflete, a emergência de uma nova ordem social, conhecida de todos, a ordem burguesa ― esta requer um tipo inteiramente novo de subjetividade, e a contrapartida desse novo homem é a própria obra de arte ― ambos se fundamentam epistemologicamente no particular, na própria descoberta de uma identidade, um contorno que distingue um particular de outros particulares e da própria totalidade. A falácia do argumento da liberdade e suposta neutralidade da crítica é que se nega com espantosa frequência que também o crítico está fazendo escolhas, elas não estão livres de serem contingentes, e que portanto o que a crítica diz pode às vezes ser tomado como a voz de um amigo mais bem informado. Cabe saber se vale ou não a pena manter a amizade, quer dizer, dar ouvidos ao crítico, mesmo quando ele não veste esta pele, é apenas aquele/a amigo/amiga com quem você gosta de parlar, trocar figurinhas, porque um dia, sabe-se lá porque, descobriram, vocês dois, ou duas, que tinham afinidades (volta-se ao Eagleton), com o perigo de, com o tempo, isso se engessar em prescrição.
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