Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
segunda-feira, 31 de dezembro de 2012
domingo, 30 de dezembro de 2012
Orides Fontela: o poema bate à porta do viver
O estranho
bate:
na amplitude
interior
não há resposta.
É o estranho
(o irmão) que bate
mas nunca haverá
resposta:
muito além é o país
do acolhimento.
FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify:
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.347.
chuva abrandando o calor
Saí para fazer a habitual caminhada noturna e resolvi
tomar outra rota, em direção à casa de minha irmã, por conta da outra irmã que
lá esperava, não necessariamente por mim. Ajudei no que pude com minha presença,
e depois voltei, também caminhando. Caía uma chuva fresca, leve, quase uma
garoa. Um trecho da rua quase vazio de pedestres, só veículos. Depois gente de
novo. E bastante gente no bar, já perto de casa, o que fez lembrar do dia que é
hoje, certa leveza no ar, a alegria das pessoas que estão já comemorando a
chegada do ano novo, nessa falsa véspera de segunda-feira.
não se escapa
Não importa quem você seja, haverá sempre um teórico (que pode ser bem prático) a dizer alguma coisa sobre “você”.
quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
rilke em tradução de josé paulo paes
Dá a cada um a sua própria morte,
Senhor.
O morrer que lhe vem daquela vida
onde teve
seu sentido e onde conheceu amor e
dor.
Rainer Maria Rilke: poemas. Trad. José Paulo Paes. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012, p.75.
Dora Ferreira da Silva
MODOS DE AMAR
Ouço o que dizem, digo.
E a fala nos degreda.
Oram por mim, por eles oro
na igreja abandonada.
Amar se dá contrito
precisando da dor para se dar.
Na alegria só os pássaros nos querem:
perto o canto cordas puras
pequenos corações do ar.
Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1999, p.351.
cansaço
O cansaço finalmente chegou às palavras. Vontade de
prolongar indefinidamente o silêncio, para talvez escutar o que em mim é grito, que não poderei escutar sem as palavras, a voracidade de dizer e dizer, sempre mais.
quarta-feira, 19 de dezembro de 2012
trecho de conversa: tentando ouvir
― Vivemos
tempos loquazes: todos falam muito, no twitter, no facebook, na blogosfera. Mas
ouvir, ouvir é para poucos.
[...]
― O barulho em volta é muito grande mesmo e confunde.
Acho que todo mundo precisa desesperadamente, nesses "tempos
loquazes" que você interpreta tão bem nessa expressão sintética, desse
cuidado, consigo e com os outros.
Murilo Mendes: "Signo de futura realidade sou"
O ESPELHO
O céu investe contra o outro céu.
É terrível pensar que a morte está
Não apenas no fim, mas no princípio
Dos elementos vivos da criação.
É terrível pensar que a morte está
Não apenas no fim, mas no princípio
Dos elementos vivos da criação.
Um plano superpõe-se a outro plano.
O mundo se balança entre dois olhos,
Ondas de terror que vão e voltam,
Luz amarga filtrando destes cílios.
O mundo se balança entre dois olhos,
Ondas de terror que vão e voltam,
Luz amarga filtrando destes cílios.
Mas quem me vê? Eu mesmo me verei?
Correspondo a um arquétipo ideal.
Signo de futura realidade sou.
Correspondo a um arquétipo ideal.
Signo de futura realidade sou.
A manopla levanta-se pesada,
Atacando a armadura inviolável:
Partiu-se o vidro, incendiou-se o céu.
Atacando a armadura inviolável:
Partiu-se o vidro, incendiou-se o céu.
MENDES,
Murilo. Poesia completa e prosa. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.443.
terça-feira, 18 de dezembro de 2012
olhando para frente
Restou-me, dos grandes ideais com que me construí,
trabalhar. Uma canção de Chico Buarque fala da distância
entre intenção e gesto. Quase um abismo, se o fator tempo se inserir entre
ambos. Que tenho eu em comum com a adolescente que fui, exceto habitarmos um corpo
que nem ao menos pode ser chamado de mesmo? Há mais descontinuidades que qualquer
coisa na linha imaginária de uma vida. Trabalho não como quem alimenta seus
ideais de juventude, mas para obter o alimento com que poderei continuar ―
trabalhando, vivendo... num estilo se possível minimalista. Restou-me também
escrever, e este é o contraponto que reconheço como pertencimento a mim mesma, e ao mundo.
segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
Fernando Pessoa
Aqui, que é o fundo
Do fim do mundo,
Livre do tudo
De ter que ser,
Poderei, mudo
De mim, esquecer.
Sob o ermo e quedo
Grande arvoredo,
Dormindo experto,
Verei passar,
De mim
liberto,
Meu sonho no ar.
Ele é diverso
Do ser disperso
Com que, distinto
De mim sonhei.
Não penso; sinto.
Ignoro: sei.
Fernando
Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia
das Letras, 2009, p.236.
as margens da alegria (título de um conto de guimarães rosa)
Certo senso comum ― que se reproduz espantosamente no
discurso dos profissionais da área da “psicologia” ― insiste na felicidade,
sentimento tão improvável, pela constância que pressupõe da condição de ser
feliz, ou seu contrário, quando os sinais estão invertidos. Certa feita um
psicólogo me perguntou se eu desejava a felicidade, enquanto eu dizia a ele
insistentemente que fora lá buscar menos que isso, bem menos, uma coisa pouco pretensiosa
e no entanto mais difícil: paz. Mas ele não ouviu, felizmente ele não me ouviu,
pois eu pude abandonar logo no início uma canoa furada fadada ao naufrágio. Em
hipótese alguma queria saber o que vinha embrulhado no pacote de “felicidade”
que ele me oferecia, certamente em troca de concessões impossíveis de minha
parte. A proposta me pareceu por demais indecente, embora eu quisesse muito
estar enganada. Pois hoje, indo para o trabalho e presenciando a mesma ladainha
de sempre – trânsito caótico, a sensação de que a cidade está prestes a
desintegrar e as pessoas de repente precipitarem-se no sem sentido da
existência, certo desalento por ver os brasileiros tão mal cuidados, e não
obstante mostrarem uma disposição notável em aceitar, desde que um mínimo
esteja garantido ―, me ocorreu novamente, por contraste, a ideia da impossibilidade da
felicidade enquanto o mundo for cruel com as pessoas. Felicidade não,
impossível. Mas há um sentimento possível: a alegria, uma espécie de satisfação
gratuita em poder viver, saber-se vivo.
miopia
O cansaço também nos deixa míopes, e isso não
necessariamente precisa ser um problema de vista cansada. É uma espécie de
anestesia pelo excesso, que embota os sentidos.
terça-feira, 11 de dezembro de 2012
Manuel Bandeira
MINHA GRANDE TERNURA
Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.
Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.
Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.
Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.
Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite
De um túmulo.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2003, p.251.
saúde
O carro-propaganda de uma farmácia passa berrando na
rua: “A Drogaria Exata deseja a todos os seus clientes um Feliz Natal e um ano
novo repleto de saúde.” Meu primeiro
pensamento: querem falir? Mas logo depois as coisas migraram para seu lugar: no
nosso tempo a saúde ― ou o que as pessoas chamam de saúde ― passa inevitavelmente
pela farmácia. Não há assim qualquer risco de falência ou contradição no anúncio. As filas
nas farmácias, que por sua vez se multiplicam em cada esquina, estão aí para
confirmar a constatação assombrosa de que saúde passou a significar doença a curar.
Felizmente as farmácias não são o único reduto da saúde.
segunda-feira, 10 de dezembro de 2012
suco de limão
Suco de limão para desintoxicar o organismo. E para
desintoxicar o dia, dormir? A discurseira corre solta, não é fácil preservar a boa
saúde psíquica em meio a tantas oportunidades e sugestões para acanalhar-se. É
preciso, pois, desintoxicar-se do dia, ou “desintoxicar o dia”, mesmo quando o
avançado da hora diz que já faz tempo é noite.
domingo, 9 de dezembro de 2012
sábado, 8 de dezembro de 2012
a inevitável ironia
Na última aula de natação o
professor falava, em tom de blague, sobre ser xingado quando aumenta muito o
nível de exigência. Ao que eu disse: “Felizmente a água não escuta palavrões.”
quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
acalmando a respiração
Hoje nadei, foi bom, só eu e a água,
que aceita silenciosa e generosa minha presença. Depois saí para ir ao médico, mas coisas desencontradas aconteceram, e eu tomei um táxi e voltei para casa.
Clarice Lispector
Uma amizade sincera
Não
é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da
escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo
precisávamos de um amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro.
Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um
telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa,
sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos.
Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que
nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que
o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de
uma sinceridade pela primeira vez experimentada.
Já
nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e
nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados.
De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas
bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar
sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem
não falava de seus amores. Experimentávamos ficar calados – mas tornávamo-nos
inquietos logo depois de nos separarmos.
Minha
solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros
apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade
mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros
eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos
poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.
Foi
quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho,
pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso
apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes,
arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para
a amizade. Depois de tudo pronto – eis nos dentro de casa, de braços abanando,
mudos, cheios apenas de amizade.
Queríamos
tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.
Mas
todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas.
Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim
encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor
sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.
Mas
como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo
discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel
como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento
a certeza de que dois e três são cinco.
Tentamos
organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como
não adiantou.
Se
ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade,
nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que
podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava
para encher os dias, sobretudo as longas férias.
Data
dessas férias o começo da verdadeira aflição.
Ele,
a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação
de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo
música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que
maior, incômoda. Não havia paz. Indo
depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.
É
verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais
esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena
questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor
usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei
entusiasmado pelos escritórios de conhecidos de minha família, arranjando
pistolões para meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por
toda a cidade – posso dizer em consciência que não houve firma que se
reconhecesse sem ser através de minha mão.
Nessa
época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as
façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o
que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei
compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar
conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera
nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei
um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia
compreender que estar também é dar.
Encerrada
a questão com a Prefeitura – seja dito de passagem, com vitória nossa –
continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a
alma. Cederia a alma? mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.
Afinal
o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.
A
pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao
Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que
não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos
rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.
Clarice Lispector. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p.13-16.
quarta-feira, 5 de dezembro de 2012
Orides Fontela (porque às vezes a voz que se deseja ouvir é a do perdedor)
TORRES
Construir torres
abstratas
porém a luta é
real. Sobre a luta
nossa visão se
constrói. O real
nos doerá para
sempre.
FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify:
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.37.
terça-feira, 4 de dezembro de 2012
memória sutil das coisas esquecidas (ou a ser)
Hoje, na
natação, quanta coisa pedida a uma simples porção de água! No entanto é lá que
meus monstros, em silêncio, vão aos poucos se desprendendo de mim. Talvez por
isso a sensação de que nada está acontecendo. Mas está: pela terceira vez
consecutiva, eu esqueci lá minha roupa de natação.
João Cabral de Melo Neto
O POEMA E A ÁGUA
As vozes líquidas do
poema
convidam ao crime
ao revólver.
Falam para mim de
ilhas
que mesmo os sonhos
não alcançam.
O livro aberto nos
joelhos
o vento nos cabelos
olho o mar.
Os acontecimentos de
água
põem-se a repetir
na memória.
MELO NETO, João Cabral de. Serial e antes. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1997, p.17.
segunda-feira, 3 de dezembro de 2012
domingo, 2 de dezembro de 2012
pensando dentro da lógica
Conversava com meu fisioterapeuta sobre a necessidade
de praticar exercícios físicos regularmente. Ele disse então que frequenta
academia desde os 18 anos, enquanto eu passei a frequentar os livros nesta
idade. Agora o corpo está se ressentindo do meu descaso, mandando recados
através de dores nada agradáveis, e limitadoras, já que preciso escolher onde
vai doer. A conversa transcorria devagar, e versava, assim, sobre as escolhas. Então ele disse: “Mas você
é mais culta que eu.” “Sim ― respondi ― mas você, por exemplo, não tem nenhuma
dor no cérebro.”
conforto espiritual (ou perdoando Deus, como a Clarice)
Uma amiga me escreve: “Entretanto, se você tiver um olhar
diferente para isso tudo, perceber como um grande aprendizado que vem ao teu
auxílio permitido por Deus e, enfim, relevar, será você
alguém mais feliz...”
não negociável
Tive uma amiga, pessoa ímpar, além de ser uma mulher bastante bonita e atraente, do tipo que os homens param para olhar na rua, pela beleza
não muito convencional. Isso, a palavra é esta: não convencional. Pois um dia,
e esta é uma das poucas falas que recordo dela, de nosso intenso convívio e
amizade, ela disse algo dessa ordem: “Separo do marido, mas não me separo de
meus livros.”
sábado, 1 de dezembro de 2012
Mário Quintana
DA
HUMANA CONDIÇÃO
Custa o
rico a entrar no Céu
(Afirma
o povo e não erra).
Porém muito
mais difícil
É um
pobre ficar na terra...
Mário
Quintana. Eu passarinho. São Paulo:
Ática, 2006, p.41.
culpa
A literatura tem uma força de iniciação na vida que
não pode ser subestimada. Ela age em camadas nem sempre disponíveis ao estoque
consciente de conexões possíveis. Esta noite eu sonhei com o conto “Lacuna”, de
que falei ontem antes de dormir. Sei que o sonho foi deflagrado pelo
enredo que as imagens do sonho acabaram por assumir, quem sabe sugeridas, em nível
consciente, pelo próprio conto. E daí? Daí que fiquei sabendo um pouco mais
sobre culpa, a minha.
escrita
Graciliano
Ramos é-nos obrigatório. Infância, um
livro magnífico. “Leitura”, um capítulo primoroso ― porque dificilmente alguém
torna-se o que é à toa...
“Julgo
que estive meio louco. E amparei-me ansioso às figurinhas de sonho que me
atenuavam a solidão.”
Graciliano
Ramos. Infância. Rio de Janeiro:
Record, 1995, p.98.
sexta-feira, 30 de novembro de 2012
lacuna
Neste fim de dia, de rotina, de fechamento do ciclo da semana de trabalho, alguma coisa nova, como uma fronteira, se desenha. Se,
como quer Moacyr Scliar neste conto, há uma lacuna entre palavra e vida,
isso não precisa ser uma advertência à palavra, mas pode ser um senão à vida. Se não é possível saber onde termina uma e onde começa a outra ― desconfio mesmo que
são a mesma coisa ―, a verdade é que se tem pouco com que dar conta da imensidão
da vida. Palavras traem. Mas e o silêncio, não seria mais traiçoeiro?
quinta-feira, 29 de novembro de 2012
quarta-feira, 28 de novembro de 2012
Mário Quintana
POEMINHO DO CONTRA
Todos esses que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!
Mário Quintana. Eu passarinho. São Paulo: Ática, 2006,
p.67.
Mário Quintana
VELHO TEMA
Chove.
Cada gota é uma rima pobre.
Sabes?... Sempre que chove, tudo
faz tanto tempo...
E qualquer poema que acaso eu
escreva
Vem sempre datado de 1899!
Mário Quintana. Eu passarinho. São Paulo: Ática, 2006,
p.88.
terça-feira, 27 de novembro de 2012
fernando pessoa, sempre
A rudeza do mundo apara as arestas, suaviza os
movimentos. Fernando Pessoa me consola do que em mim é lamento. Qualquer verso
desse homem parece ser maior que a sombra que faz o sofrimento:
Que dia este! Quantas coisas foram
Irregulares no acontecer!
E
não são todos os dias assim?
domingo, 25 de novembro de 2012
murilo mendes - um poema para o fim de tarde quase chuvoso de domingo
NIHIL
Profundo penoso
Das nuvens do inferno
Surgiu meu destino.
Grandeza não tive,
Nem jeito pra vida.
Nesta noite maquinal,
Ouvinte apenas da guerra,
Sem passado nem futuro,
Odiando o presente,
Me encontro face a face
Com a estátua do pó,
À toa, esperando
A mão do Criador
Finalmente me abater.
MENDES,
Murilo. Poesia completa e prosa. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.384-385.
sábado, 24 de novembro de 2012
a perfeição do amor
Há visões ― cenas ― beirando o insuportável. No entanto,
parece ser impossível esquivar-se delas, a não ser que se pudesse retroceder ao
útero materno. O que quer dizer que acaba se encontrando um meio de
suportá-las, porque este é mesmo o preço que se paga para viver. Não são, a
rigor, insuportáveis, embora a consciência procure rápido anestésicos para
lidar com elas. Um deles é o consumo. No entanto, o único consolo para o dado
insuportável da existência é o amor. A redenção possível.
pombos, um incômodo
Preciso falar dos pombos, mas preciso antes conseguir
falar dos pombos. Eles têm me incomodado ultimamente, como muitas outras
coisas, aliás. Muitas outras coisas? Talvez o correto seria dizer algumas outras coisas. Mas saiu “muitas”,
e a escrita não precisa sofrer a repressão ― seria melhor dizer censura, mas
saiu “repressão” ― que timbra outros aspectos da (minha) vida. Por enquanto é
isso: preciso conseguir começar a falar dos pombos. Já é um começo.
quarta-feira, 21 de novembro de 2012
terça-feira, 20 de novembro de 2012
respirando através da escrita
Vem-me, amiúde, um estalo acerca da necessidade de
uma faxina no blog, coisas que precisam ser eventualmente apagadas, ou então
encontrar endereço novo. Cedo ou tarde essa mexida vai acontecer, porque se eu
continuo a escrever para um grande nada, mesmo isso passou por certa
metamorfose. Uma metamorfose profundamente libertadora.
acerca da dificuldade do amor
O desamor encerra uma espécie de muro imperceptivelmente
erguido apartando sentimentos que seriam, justamente, alimento, e alimentados, pelo
amor. Na impossibilidade de transpor simplesmente este muro, há a esperança de
que ele possa ser minado, pelo menos um pouco, pela necessidade do amor, em
especial o fraterno, sem prejuízo do outro. Quem sabe alguma coisa floresça.
domingo, 18 de novembro de 2012
lido pouco antes de dormir: quando a madrugada chega
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.
Fernando
Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia
das Letras, 2009, p.130.
lido pouco antes de dormir: quando chega o sono
Mas entre mim e ver há um grande sono,
E sentir é só a janela a que eu assomo.
Fernando
Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia
das Letras, 2009, p.130.
sábado, 17 de novembro de 2012
quarta-feira, 14 de novembro de 2012
terça-feira, 13 de novembro de 2012
rebelião íntima
Às vezes, muitas vezes, mais vezes do que se
desejaria, é melhor aceitar, sem discutir, obstar, argumentar... É que acaba
cansando menos. Aceitar, obedecer, acatar, não contestar ―
qualquer verbo que com a submissão puder se alinhar. E, bem no íntimo, naquele
terreno evasivo do quase não saber, saber que esse aceitar é apenas um modo de
continuar a se rebelar.
segunda-feira, 12 de novembro de 2012
domingo, 11 de novembro de 2012
sábado, 10 de novembro de 2012
lembrando um poema de bertold brecht
Lutar, lutar, lutar ― como uma coisa imperiosa, absoluta, que se impõe.
canção de Silvio Rodriguez
histórias para não dormir
Pensando bem, nem é
estranho que a literatura (vale dizer, o que se encontra pressuposto neste
termo) tenha se tornado um destino para mim: na infância, o conto da carochinha
que me foi contado foram histórias de assombração de variado calibre ― o espírito da mata que
assustava caçadores noturnos; o caixão que pesava sobre um carro passando, à
noite, diante de um cemitério à beira da estrada; o diabo que veio pessoalmente
dar uma surra, com suas poderosas línguas de fogo, num homem que havia duvidado de
sua existência; mortos que apareciam a seus parentes... Fora a história da “fera da Penha”.
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
segunda-feira, 5 de novembro de 2012
Alberto Caeiro
Duas
horas e meia da madrugada. Acordo e adormeço.
Houve
em mim um momento de vida diferente entre sono e sono.
Se
ninguém condecora o sol por dar luz,
Para
que condecoram quem é herói?
Durmo
com a mesma razão com que acordo
E é no
intervalo que existo.
Nesse
momento, em que acordei, dei por todo o mundo ―
Uma
grande noite incluindo tudo
Só para
fora.
Poesia completa
de Alberto Caeiro.
São Paulo: Companhia de Bolso, 2005, p.139.
sexta-feira, 2 de novembro de 2012
leveza
E se o meu ser pudesse se repartir a cada momento,
como se não houvesse um único eu? Os
momentos sucedendo-se não linearmente, uma espécie de bifurcação contínua da
vida. Haveria essa coisa chamada tempo? Este constante instante existe, mas
parece que uma única possibilidade é trilhada, fazendo da vida uma linha
imaginária e perceptível pela memória. Mas e se por exemplo agora, quando a
inquietação me invade, eu conseguisse, ainda que com os andrajos rotos do eu que
reconheço como eu, eu conseguisse ir na direção da desintegração do átomo do
eu? A noite ficaria mais leve. Uma justificativa para se contar / ler histórias antes de dormir: diminuir a densidade do eu, para que ele consiga flutuar nas águas do sono.
Emily Dickinson
Uma noção de coisa finda
Nas Covas é captada –
Um não ligar para o Futuro –
Um Ermo de Medida.
Ao exibir-se audaz a Morte
O que a rigor nós somos
E a nossa serventia Eterna
Afinal inferimos.
There is a finished feeling
Experienced at Graves -
A leisure of the Future -
A Wilderness of Size.
By Death's bold Exhibition
Preciser what we are
And the Eternal function
Enabled to infer.
Experienced at Graves -
A leisure of the Future -
A Wilderness of Size.
By Death's bold Exhibition
Preciser what we are
And the Eternal function
Enabled to infer.
DICKINSON,
Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira. São Paulo:
Iluminuras, 2011, p.138-139.
quinta-feira, 1 de novembro de 2012
terça-feira, 30 de outubro de 2012
Fernando Pessoa
Agita as árvores um vento
Sob o plácido azul do céu,
O que agita meu pensamento
É que hoje deixo de ser meu.
Fernando
Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia
das Letras, 2009, p.74.
domingo, 28 de outubro de 2012
herberto helder: o canto esdrúxulo que regula a terra...
"na reescrita de cada coisa já escrita na entrelinha das coisas"
terça-feira, 23 de outubro de 2012
Deus
...
Os favos no escuro enlouquecem a infância.
Nas suas casas profundas Deus aguarda que se
demonstre
o teorema perfeito
e terrível.
Herberto Helder. Ofício
cantante. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p.401.
domingo, 21 de outubro de 2012
sentimento fraterno
A amiga que apareceu no sonho desta noite está
distante, geograficamente ― fomos
perdendo o contato aos poucos. Ela apareceu como uma espécie de saudade do que não
chegamos a viver. Não, é um pouco diferente: como se fôssemos irmãs habitando
países diferentes.
sábado, 20 de outubro de 2012
acidente
Coração batendo surdo. É quando o coração, ao bater, parece
estar esbarrando em alguma coisa. Como se estivesse precisando de mais espaço.
Acidente da semana: uma garrafa de vinho se espatifou no chão do supermercado
quando passei estabanada, esbarrando o carrinho. Estava em local propício a
acidentes, a garrafa. Paralisia momentânea,
até me situar diante da garrafa de vinho espatifada no chão, com o vinho
derramado. A enorme incompetência mesmo para quebrar acidentalmente uma garrafa
de vinho no supermercado. O líquido colorido derramado. Incompetência ainda maior
para lidar com esse bater surdo, o vinho tinto de contidas emoções, derramadas
acidentalmente no coração. Esbarrei onde não devia, distraída estava.
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