Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2013
domingo, 22 de dezembro de 2013
trecho de conversa: o pulsar da vida
“Sinto que
tem coisas para as quais a gente tem de dar um bom desconto, pois somos muito
rigorosas, não é? Eu sou... Quero sempre eu mesma estar melhor, falar
coisas melhores, observar mais, contribuir mais para o bem estar dos outros, mas o tempo
corre, os segundos pulsam junto com as palavras que brotam segundo uma lógica
que não controlamos e os acontecimentos são da conta de... diria Deus,
mas tenho escrúpulos...”
sábado, 21 de dezembro de 2013
narrativas
“[...] as histórias são sempre maiores que nós,
aconteceram conosco e sem ter delas consciência fomos seus protagonistas, mas o
verdadeiro protagonista da história que vivemos não somos nós, é a história que
vivemos.” (Antonio Tabucchi, O tempo
envelhece depressa. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 95.)
quarta-feira, 18 de dezembro de 2013
terça-feira, 17 de dezembro de 2013
sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
Walt Whitman — "but offer the value itself"
Não trago grana
ou amores ou roupa ou comida .... mas é bom também ;
Não envio nenhum
agente ou médium .... não ofereço nenhum representante de valor — mas ofereço o valor em si.
WHITMAN, Walt. Folhas de relva. Trad. Rodrigo Garcia
Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2008, p. 137.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2013
Paulo Henriques Britto
BIODIVERSIDADE
Há maneiras mais fáceis de se expor
ao ridículo,
que não requerem prática, oficina, suor.
Maneiras mais simpáticas de pagar mico
e dizer olha eu aqui, sou único, me amem por favor.
que não requerem prática, oficina, suor.
Maneiras mais simpáticas de pagar mico
e dizer olha eu aqui, sou único, me amem por favor.
Porém há quem se preste a esse papel
esdrúxulo,
como há quem não se vexe de ler e decifrar
essas palavras bestas estrebuchando inúteis,
cágados com as quatro patas viradas pro ar.
Então essa fala esquisita, aparentemente anárquica,
de repente é mais que isso, é uma voz, talvez,
do outro lado da linha formigando de estática,
dizendo algo mais que testando, testando, um dois três,
como há quem não se vexe de ler e decifrar
essas palavras bestas estrebuchando inúteis,
cágados com as quatro patas viradas pro ar.
Então essa fala esquisita, aparentemente anárquica,
de repente é mais que isso, é uma voz, talvez,
do outro lado da linha formigando de estática,
dizendo algo mais que testando, testando, um dois três,
câmbio? Quem sabe esses cascos
invertidos,
incapazes de reassumir a posição natural,
não são na verdade uma outra forma de vida,
tipo um ramo alternativo do reino animal?
incapazes de reassumir a posição natural,
não são na verdade uma outra forma de vida,
tipo um ramo alternativo do reino animal?
Paulo
Henriques Britto. Macau. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 9.
um rabisco no papel
Bem disse quem disse que são as palavras que suportam o mundo, não os ombros. Mesmo os
ombros mais fortes recorreram à poesia.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2013
o tecido delicado da vida
É tudo muito delicado, tão delicado que eu sinto, às
vezes, uma imensa responsabilidade em viver, falar, estar em relação com o
outro. Digo “eu” sabendo dos limites necessários do “eu”, limites que
preservariam o que é delicado.
domingo, 8 de dezembro de 2013
futebol brasileiro
Ia falar da última rodada do campeonato brasileiro, a
propósito de uma cena vista ontem no documentário “Edifício Master”, quando a
internet traz a notícia – e as imagens – de uma briga tribal entre torcedores
de dois dos times que estão duelando, conforme linguagem empregada pela própria
mídia para caracterizar os embates da última rodada. Tratava-se, inicialmente, voltando ao documentário de Eduardo Coutinho, da fala do ex-jogador e ex-treinador Paulo Mata, que quando técnico do Itaperuna
entrou nu em campo em protesto contra o resultado na partida contra o Vasco.
Paulo Mata, perguntado sobre o motivo de seu protesto, disse ao
diretor-entrevistador: “o futebol brasileiro...”
walt whitman: a saudável anarquia da poesia
.... Um grito
no meio da multidão,
Minha própria
voz, redonda e arrebatadora e definitiva.
WHITMAN, Walt. Folhas de relva. Trad. Rodrigo Garcia
Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2008, p. 111.
quinta-feira, 5 de dezembro de 2013
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
palavra peregrina
Enfim eu voltei para a análise, depois de
praticamente desacreditar do método e sofrer os reveses do discurso pouco hábil
de uma analista pouco profissional. Mas isso, a mistura entre o profissional e
o pessoal, eu só vi depois, e nem adianta pensar que a fluidez desses limites é
prerrogativa da psicanálise, ou sua vantagem. Eu estava sufocando nos limites
estreitos daquele “consultório”... Agora voltei, depois da re-volta. Voltei mas
para outro lugar, o que significa uma fronteira que se alcança. Voltei para a
busca de uma escuta, uma escuta que ouça a palavra peregrina que levo e não se
apresse a encaixotá-la num texto que não me pertence nem me diz respeito. Às
vezes é preciso ficar com os fragmentos, os cacos do texto, porque foi isso que
se conseguiu produzir como imagem — representação — de um turbilhão, de um
excesso. Vamos ver o que vai, ou não, acontecer.
domingo, 1 de dezembro de 2013
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
via crucis
“Mas a
gente está perdida de qualquer jeito. Não há escapatória. Todos nós sofremos de
neurose de guerra.”
Clarice
Lispector. A via crucis do corpo. Rio
de Janeiro: Rocco, 1998, p.50.
terça-feira, 26 de novembro de 2013
três letras
Lar é uma palavra que agasalha a alma — não: agasalha
o corpo, que sente essa bem-aventurança como se fosse uma oferta para a alma. E
quando, à noite, o último momento da consciência do dia começa a ceder ao
universo do sono e da noite e o corpo já se encontra agasalhado na cama, então a
palavra lar ganha toda espessura e conforto que suas três letras mal adivinham comportar.
domingo, 24 de novembro de 2013
"O homem atropela o que é mais frágil que ele"
"Por que escolhi a delicadeza
como parte essencial da condição humana? Por não ser uma qualidade intrínseca
do humano. Isso é justamente o que a faz necessária. A delicadeza não é causa
de nossa humanidade, é efeito dela. Não é meio, é finalidade. O homem não é
necessariamente delicado ― daí a urgência de se preservar, na vida
social, as condições para a vigência de alguma delicadeza. Erramos ao
chamar os atos que nos repugnam de desumanos. O homem, não o
animal, usa de violência contra seu semelhante. O homem inventou o prazer da
crueldade: o animal só mata para sobreviver. O homem destrói o que
ama ― pessoas, coisas, lugares, lembranças. Se perguntarem a um homem
por que razão ele se permitiu abusar de seu semelhante indefeso, ele dirá: eu
fiz porque nada me impediu de fazer. O abuso da força é um gozo ao qual
poucos renunciam. Além disso, o homem é capaz de indiferença, essa forma
silenciosa e obscena de brutalidade. O homem atropela o que é mais frágil que
ele ― por pressa, avidez, sofreguidão, rivalidade ―, sem
perceber que com isso atropela também a si mesmo.”
KEHL, Maria Rita. Delicadeza. In: NOVAES, Adauto (Org.). A
condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações. Rio de
Janeiro: Agir; São Paulo: Edições SESC, 2009, p. 453-454.
sábado, 23 de novembro de 2013
Augusto dos Anjos
VERSOS ÍNTIMOS
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Augusto
dos Anjos. Eu e outras poesias. Rio
de Janeiro: Betrand Brasil, 2010, p.156.
sexta-feira, 22 de novembro de 2013
voz e vez
Cheguei em casa quase sem voz, e as vicissitudes do
dia de hoje — que talvez tenham contribuído para comprometê-la — fizeram-me
pensar, de modo um tanto gratuito, se de fato minha voz me pertence, se eu
tenho efetivamente voz. A resposta é não, parece-me. Mas isso não é definitivo.
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
necessidade
Provavelmente está fazendo um calor de rachar lá fora.
O sol imperioso e implacável faz concordar com Aluísio Azevedo. É feriado, e alguns
poucos transeuntes se arriscam pela avenida, movidos por necessidades que o receio
do calor e do sol não venceu — e afinal nem todos se importam com isso. Há
obviamente os carros, incessantes, e as praias cariocas devem estar cheias. Felizmente
não preciso sair de casa hoje, e mesmo a feira pode esperar. Nenhuma
necessidade me assalta, a ponto de eu ter de sair sob esse sol tirânico. E em
casa consigo me proteger do calor ligando o ar condicionado. Uma amiga ilustre
concorda: “no Brasil ar-refrigerado não é um luxo, é uma necessidade.”
terça-feira, 19 de novembro de 2013
clarice lispector, trecho do conto "por enquanto"
“Nesse
intervalo dei um telefonema e, para o meu gáudio, já são dez para as sete.
Nunca na vida eu disse essa coisa de ‘para o meu gáudio’. É muito esquisito. De
vez em quando eu fico meio machadiana. Por falar em Machado de Assis, estou com
saudade dele. Parece mentira mas não tenho nenhum livro dele em minha estante.
José de Alencar, eu nem me lembro se li alguma vez.”
Clarice
Lispector. A via crucis do corpo. Rio
de Janeiro: Rocco, 1998, p.47.
segunda-feira, 18 de novembro de 2013
esquecendo os sonhos
Tudo por nada, ou quase nada, aquele nada que
sobrenada na matéria amorfa dos sonhos. Talvez os sonhos sejam a desintegração
dos nadas... em matéria que vai desintoxicando a alma.
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
o escorpião e o sapo
Penso sempre naquela fábula, em que o escorpião diz
ao sapo que não pode mudar sua natureza. Essa fábula coloca um limite, talvez pouco
confortável e evidente, entre o animal e o homem. Mas qualquer que seja a
vocação humana, seu desafio é contrariar sua natureza.
terça-feira, 12 de novembro de 2013
domingo, 10 de novembro de 2013
Ricardo Reis
Em
vão procuro o bem que me negaram.
As
flores dos jardins dadas aos outros
Como
hão-de mais que perfumar de longe
Meu desejo de tê-las?
Poesia completa
de Ricardo Reis.
São Paulo: Companhia de Bolso, 2005, p.66.
sábado, 9 de novembro de 2013
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
uma boa notícia
Não
estamos (muito) sós no Universo. E o ser humano talvez não seja a última bolacha
do pacote, algo de que sua arrogância tem dado mostras.
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
Álvaro de Campos
[...]
Ah, quando nos
fazemos ao mar
Quando largamos da terra, quando a vamos perdendo de vista,
Quando tudo se vai enchendo de vento puramente marítimo,
Quando a costa se torna uma linha sombria,
Nessa linha cada vez mais vaga no anoitecer (pairam luzes) —
Ah então que alegria de liberdade para quem se sente.
Cessa de haver razão para existir socialmente.
Não há já razões para amar, odiar, dever,
Não há já leis, não há mágoas que tenham sabor humano...
Há só a Partida Abstracta, o movimento das águas
O movimento do afastamento, o som
Das ondas arrulhando à proa,
E uma grande paz intranquila entrando suave, no espírito.
Poesia
completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo:
Companhia de Bolso, 2007, p.219.
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
sentimentos mínimos
A diferença entre saber-se e sentir-se insignificante
é dada pela angústia que se sente diante do sentimento da insignificância, uma
percepção que empurra para a escrita.
Paulo Henriques Britto
Viver momento a momento
com a insensatez dos insetos
que arremetem impávidos
contra o real da vidraça
obedecendo sem trégua
à lógica imperturbável
que trazem em suas entranhas.
Paulo Henriques Britto. Formas do nada. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 62.
quinta-feira, 31 de outubro de 2013
Herberto helder
POEMACTO
(III)
O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor pôe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.
Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas —
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor pôe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.
Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas —
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.
Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.
O actor em estado geral de graça.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.
Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.
O actor em estado geral de graça.
Herberto Helder. Ou o
poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006, p.112-115.
vinto tinto seco
Driblando essa e aquela recomendação médica — aliás,
as especialidades sabem bem sê-lo quando o assunto é divergir nas restrições
alimentares —, retornei ao vinho (quase) cotidiano e ao café (quase) diário, mas
não ordinário. Também o cacau em pó foi reabilitado, em porções parcimoniosas.
E dizer “parcimônia” é menos vulgar que “beba com moderação”. Pelo menos até a
próxima crise de labirintite.
terça-feira, 29 de outubro de 2013
restos da noite
Sonhos... o que fazer deles? Não os sonhos de
outrora, metamorfoseados em “hoje”, mas os originais, que comparecem noite após
noite trazendo ecos de um mundo pouco habitável. A sustentabilidade dos sonhos —
quase um clichê —, fantasmas noturnos dos quais restam borboletas, não por
comportarem beleza, mas pelo efeito da imagem saltitante e fugidia no terreno
da memória. De intrincados enredos emergem lepidópteros fugidios, que aos
poucos se dispersam com as primeiras luzes do dia. Camadas e camadas de
inconsciente removidas enquanto se dorme. Por que sonhamos? Uma explicação
biológica dirá que são um traço evolutivo, uma espécie de compensação noturna
para as tensões diurnas, uma forma do organismo colocar-se em equilíbrio. Mas
se permanecem com o dia, estão pedindo algo do corpo que lhes serviu de palco,
ainda que seja essa parca escrita, circular e evasiva, forma de continuarem
batendo asas para além do efêmero do imago.
segunda-feira, 28 de outubro de 2013
Rio pós-moderno
O trânsito dessa cidade está muito ruim — péssimo é o
termo adequado. E sua propalada beleza, fonte de divisas na exploração do
turista, anda sofrendo reveses. Há seis anos, quando vinha fazer pesquisas para
a tese na Biblioteca Nacional, sem imaginar que em breve iria transferir minha
vida para cá, apaixonei-me pelo centro da cidade, a arquitetura preservada do
tempo do Império, a elegância da Rio Branco. Mas a geografia do centro do Rio
mudou bastante após o fenômeno das manifestações. Agora os tapumes dominam a
fachada das agências bancárias, bem como de alguns órgãos públicos, e não há
redenção para tamanho mau gosto. Quem te
viu, quem te vê, diria talvez Chico Buarque, se estivesse pontificando na
cena política. O centro do Rio está feioso, perdeu o charme, a elegância da
arquitetura combinada ao traço moderno. No Rio pós-moderno a política tem
deixado dois rastros de destruição: um oficial, configurado no bota-abaixo do furor
obreiro da prefeitura, em conluio com as esferas estadual e federal; um não
oficial, fruto da violência das manifestações, inclusive contra os mandatários
das obras.
Paulo Henriques Brito
DE VULGARI ELOQUENTIA
A realidade é coisa delicada,
de se pegar com as pontas dos dedos.
Um gesto mais brutal, e pronto: o nada.
A qualquer hora pode advir o fim.
O mais terrível de todos os medos.
Mas, felizmente, não é bem assim.
Há uma saída — falar, falar muito.
São as palavras que suportam o mundo,
não os ombros. Sem o "porquê", o "sim",
todos os ombros afundavam juntos.
Basta uma boca aberta (ou um rabisco
num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto:
falem sem parar. Mesmo sem assunto.
de se pegar com as pontas dos dedos.
Um gesto mais brutal, e pronto: o nada.
A qualquer hora pode advir o fim.
O mais terrível de todos os medos.
Mas, felizmente, não é bem assim.
Há uma saída — falar, falar muito.
São as palavras que suportam o mundo,
não os ombros. Sem o "porquê", o "sim",
todos os ombros afundavam juntos.
Basta uma boca aberta (ou um rabisco
num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto:
falem sem parar. Mesmo sem assunto.
Paulo
Henriques Brito. Macau. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.18.
Enem propõe tema chapa-branca para redação
No ano em que protestos e manifestações — deflagrados
por reivindicações por melhorias nos transportes públicos — sacudiram o país, mudando
a imagem que o poder tinha dos brasileiros, o governo propõe como tema supostamente
relevante para discussão entre jovens que estão terminando o ensino médio a
chamada lei seca. Nas ruas, nas manifestações, os jovens propuseram várias
pautas de discussão e negociação, levantaram debates até então engavetados e
considerados pouco importantes pelo poder. Debates que ninguém imaginaria viessem à tona. Na redação do Enem, todavia, os jovens, os mesmos das manifestações,
foram convidados a falar de um tema fora de foco, digamos assim. Não é que a lei seca não seja importante. Como outras leis, merece toda a atenção da sociedade. Mas ela já foi debatida e implementada, não é mais a bola da vez. Sabe-se, ademais, que as redes sociais são usadas para evitar flagrantes do bafômetro. Em adição, está pressuposto no tema, ao
contrário das reivindicações por melhorias nos transportes públicos, que esses
jovens serão futuros proprietários de automóveis, e que deverão beber com
moderação, evitando fazê-lo quando forem dirigir seus carros. Perfeito. Mas trata-se de um horizonte
burguês, portanto prevendo um jovem enquadrado em um lugar social e profissional,
dobrado às imposições (ou necessidade, talvez) de ter um automóvel e usá-lo de
forma responsável. Mais um pouco e o Enem se transforma em um manual de
instruções para a vida adulta regrada. Por esse prisma, não é de espantar que, no exame de 2012, um candidato tenha inserido uma receita de macarrão instantâneo no texto. E o protagonismo
juvenil? E a luta por educação, saúde e serviços públicos de qualidade? E as tantas outras leis importantes, que vêm passando ao largo do debate social?
domingo, 27 de outubro de 2013
quinta-feira, 24 de outubro de 2013
terça-feira, 22 de outubro de 2013
acordar
O ruído do ar condicionado
Avisa que amanheceu.
Há um microclima no quarto
Traduzível como o prazer de estar vivo,
Enquanto o mundo soa-me
Um espaço contíguo
Onde outros vivos se movem.
domingo, 20 de outubro de 2013
Paulo Henriques Britto
POÉTICA PRÁTICA
A realidade é um calhamaço
insuportável?
Tragam-me então resumos.
A vida que se leva é um filme inassistível?
Vejamos só os anúncios.
Tragam-me então resumos.
A vida que se leva é um filme inassistível?
Vejamos só os anúncios.
São os limites do corpo intrusões malignas
de um demiurgo escroto?
O corpo não é preciso, e o espírito é impreciso:
eu não é um nem outro.
de um demiurgo escroto?
O corpo não é preciso, e o espírito é impreciso:
eu não é um nem outro.
Anda inconveniente a tal da poesia,
a significar?
Nada como um bom significante vazio
para abolir o azar.
a significar?
Nada como um bom significante vazio
para abolir o azar.
Paulo Henriques Britto. Formas do nada. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 18.
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
Paulo Henriques Brito
III (De Três Epifanias Triviais)
O hábito de estar aqui agora
aos poucos substitui a compulsão
de ser o tempo todo alguém ou algo.
Um belo dia — por algum motivo
é sempre dia claro nesses casos —
você abre a janela, ou abre um pote
de pêssegos em calda, ou mesmo um
livro
que nunca há de ser lido até o fim
e então a ideia irrompe, clara e
nítida:
É necessário? Não. Será possível?
De modo algum. Ao menos dá prazer?
Será prazer essa exigência cega
a latejar na mente o tempo todo?
Então por quê?
E neste exato
instante
você por fim entende, e refestela-se
a valer nessa poltrona, a mais
cômoda
da casa, e pensa sem rancor:
Perdi o dia, mas ganhei o mundo.
(Mesmo que seja por trinta
segundos.)
Paulo
Henriques Brito. Macau. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 72-73.
domingo, 13 de outubro de 2013
sábado, 12 de outubro de 2013
em comum com Clarice Lispector
Sábado é meu dia — diz Clarice em uma de suas crônicas. E hoje em
particular é meu dia também pela criança que continua a viver em mim.
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
Fernando Pessoa
Sim, por fim uma certa calma...
Certa ciência antiga, sentida
Na substância da vida,
De que não há acabar da alma,
Qualquer que seja a estrada que é seguida...
Fácil visão?
Crença de muitos? Não.
Que o que sinto tem diferença.
É uma vida, não uma crença...
Não é meu: é do coração.
Sol que atingiste o ocidente,
Sei que outro te tornarei a ver —
Um outro e o mesmo no oriente:
Tudo é ilusão, mas nada mente,
O Nada que é Tudo é o Ser.
Fernando
Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia
das Letras, 2009, p.256.
terça-feira, 8 de outubro de 2013
eu, eu, eu...
Talvez, no enunciado “estou sofrendo...”, a questão
não seja alterar o verbo, mas a pessoa do discurso, pois o “eu” parece imperar
absoluto no reino do sofrimento. Não se trata de mudar de domínio: enquanto
houver “eu” haverá sofrimento. “O eu faz parte das coisas que é preciso
dissolver”. (Deleuze, A ilha deserta,
p.249).
Kafka
De todo modo, as baratas estão debaixo da cama —
lentas, semiocultas, empoeiradas, com patas mais espessas e movimentos mínimos.
Parecem não querer serem incomodadas pelas inquietações humanas, que no entanto
lá chegam, em seu nicho empoeirado. Debaixo da cama é, também, um lugar em que certas camadas dos sonhos são permitidas.
domingo, 6 de outubro de 2013
sonho-enigma
Da sequência de imagens que consegui organizar e recordar
ao acordar — naquele momento em que se tem ciência de que se trata de um sonho —,
aconteceu-me estar sentada num metrô, ou coisa equivalente, acompanhada de
alguém que não consigo identificar, mas que teria que ceder seu lugar quando
uma outra pessoa chegasse, uma espécie de cavaleiro distinto que tinha aquele
lugar destinado para si. Já não era mais metrô então, mas um evento social. O
cavaleiro chega, o lugar é cedido, e outro personagem sai. Movida quem sabe
pela culpa, quem sabe pelo desejo de entender o porquê do que se passava,
encaminhei-me ao quarto onde o outro personagem, que cedeu o lugar, se
encontrava, e era uma criança, um menino, que sentia frio, mas que parecia
disposto a suportar isso, resignado. Aqui seria preciso dizer que o menino era
negro. Mas por que dizê-lo? Por que isso faria algum tipo de diferença? Já então a cena é outra, e recorro
à minha mãe, que está passando roupa, para conseguir uma forma de agasalhá-lo,
protegê-lo, para que ele não sentisse frio. Minha mãe a princípio nega, então
insisto e consigo. O sonho termina aí. Não sei mais se ainda dormindo ou já acordada,
me dei conta de que aquela criança eu havia expulsado de mim, em troca do mundo
adulto e civilizado das convenções. Pode ser que tenha concorrido no sonho a
própria forma com que os negros eram tratados nos EUA, cedendo seu lugar no ônibus para os brancos. Não
precisaria ir tão longe, pois no Brasil os lugares também são bem marcados, o
que remete ao cavalheiro distinto que se sentaria ao meu lado. Seria bem mais
fácil para mim, talvez, entender o sonho se o menino não fosse negro. Mas ele
não tem só essa diferença em relação a mim: há também a questão do gênero e o
fato de ser uma criança. Ele, efetivamente, é a representação do outro, da
alteridade, da diferença, que por vezes expulso de mim para sobreviver. Ele é
uma diferença que de repente gritou dentro de mim, ou melhor, no seu silêncio
resignado, fez-se ouvir, porque eu tentei escutar. Ter sonhado com isso, ter,
no sonho, ido atrás, reconhecido, procurado proteger, conseguido discernir e
escutar essa diferença frágil e silenciosa é mais do que um consolo: é a
indicação de que um percurso está se fazendo.
acordar com clarice lispector
"O anonimato é suave como um sonho." (de A descoberta do mundo, 1999, p.75)
sábado, 5 de outubro de 2013
Emily Dickinson
Depois de mais cem anos
Ninguém sabe o Lugar
É Paz que não se move
A Dor que ali doeu
Cresceu altiva a grama
O Estranho que foi lá
Só viu a Ortografia
De quem já faleceu
No ar do Verão o Vento
Da trilha há de lembrar
O Instinto guarda a Chave
Que a memória perdeu
After a hundred years
Nobody knows the Place
Agony that enacted there
Motionless as Peace
Weeds triumphant ranged
Strangers strolled and spelled
At the lone Orthography
Of the Elder Dead
Winds of Summer Fields
Recollect the way –
Nobody knows the Place
Agony that enacted there
Motionless as Peace
Weeds triumphant ranged
Strangers strolled and spelled
At the lone Orthography
Of the Elder Dead
Winds of Summer Fields
Recollect the way –
Instinct picking up the Key
Dropped by memory
Dropped by memory
DICKINSON, Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira.
São Paulo: Iluminuras, 2011, p.74-75.
sexta-feira, 4 de outubro de 2013
sonhos
O que dizer dos sonhos quando, para se dizer algo
deles, já são matéria transformada pela linguagem, incorporados como narrativa
reconhecível? Sonhei com Bob Dylan, que estava muito próximo de mim, mas havia
um silêncio imposto que impedia a fala, minha e dele. Esse silêncio — suas
circunstâncias — é a parte mais estranha de tudo, praticamente intraduzível, e
trazia consigo uma origem, um agente deflagrador. Havia uma interdição à fala, algo
que foi se construindo, se fazendo, e era doloroso, difícil, e traía fragilidade,
vulnerabilidade, ausência de proteção de minha parte, como se eu tivesse
desamparado alguém que amo. O impedimento de falar era muito incômodo, porque não
era simplesmente algo físico: antes, falar representava uma espécie de perigo,
uma ameaça. A sensação foi única, muito viva e real, intraduzível e praticamente
incompreensível pelo pensamento e seus signos verbais. Havia uma situação
envolvendo um improvável Bob Dylan, frágil e desamparado, e a mim, impedida de
falar por coisas que eu mesmo havia feito, ou fizeram, quem sabe. Mas aqui eu
posso, ainda que me censure.
terça-feira, 1 de outubro de 2013
Emily Dickinson
O Espírito não mostra
A mais íntima Hora –
Que Horror subjugaria as Ruas
Se lhe viesse à Cara
O Porão dentro da Alma
O Subterrâneo Peso –
Só Deus faz um Lugar tão cheio
Ficar silencioso.
Its Hour with itself
The Spirit never shows –
What Terror would enthrall the Street
Could Countenance disclose
The Subterranean Freight
The Cellars of the Soul –
Thank God the loudest Place he made
Is license to be still.
The Spirit never shows –
What Terror would enthrall the Street
Could Countenance disclose
The Subterranean Freight
The Cellars of the Soul –
Thank God the loudest Place he made
Is license to be still.
DICKINSON,
Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras,
2011, p.172-173.
sábado, 28 de setembro de 2013
Ricardo Reis
Pobres
de nós que perdemos quanto
Sereno e forte nos dava a vida
O
único modo
O único humano de a ter...
Pobres
de nós
Crianças tristes que mal se
lembram
De
pai e mãe
E
andam sozinhas na vida cega
Sem
ter carinhos
Nem
saber nada
De aonde vamos pela floresta,
Nem donde viemos pela estrada
fora…
E somos tristes, e somos
velhos,
E
fracos sempre…
Sem
que nos sirva.
Poesia completa
de Ricardo Reis.
São Paulo: Companhia de Bolso, 2005, p.33.
quinta-feira, 26 de setembro de 2013
aflição moderna
Você está numa fila qualquer, via de regra de
supermercado. A pessoa que está atrás de você dá, de repente, o ar de sua
presença, através de um leve e inconveniente esbarrão, ou empurrão, suficiente para
você sentir a presença física da pessoa e traduzi-la como pressão para andar mais
depressa. Mas se você, incomodado com aquele contato súbito e indesejado, cede
à pressão, arrisca-se a repetir o mesmo gesto com quem está na frente. Você
então move-se um pouco, o suficiente para se proteger da pressão exercida por
quem está atrás, mas a pessoa entende então que a fila andou, e anda também,
mantendo a pressão para que você continue a andar, a avançar, para que chegue
logo ao caixa, passe logo os produtos que veio comprar, pague rápido, porque
você mal termina de fazer cada uma dessas etapas e quem está atrás já está
ocupando o lugar que você achou que era seu na fila do supermercado. Então é desconfortável
saber, sentir, que o lugar ilusório que se ocupa no mundo não é necessariamente
a possibilidade de estar em paz, porque parece que ninguém está em paz.
terça-feira, 24 de setembro de 2013
o bem mais precioso
Imaginar a possibilidade da perfeição não é alucinação.
A liberdade, bem supremo, é a perfeição.
domingo, 22 de setembro de 2013
O que é a vida espiritual de alguém?
Seria aquilo que, tradicionalmente, se opõe à
matéria? Então seria mais por tradição linguística — ou conceitual — que se
continua a falar em vida espiritual. Mas deixando essa oposição de lado, é
difícil não admitir que há uma dimensão espiritual da existência, com
necessidades próprias e pouco conhecidas, talvez porque sejam menos
intercambiáveis que as demais, mais visíveis e evidentes por si. Reconhecer em
si demandas espirituais é, de alguma forma, perceber-se à parte, ainda que se
saiba pertencendo a uma maioria. Há as que são canalizadas e satisfeitas nas
religiões. E há aquelas que não encontram refúgio ou sentido na religião. Mas continuam
sendo espiritualidade.
o silêncio, esse ancestral do homem
Tantos nomes que não há para dizer o silêncio —
a combustão interior do tempo;
uma maçã cortada, uma pomba de éter:
o pensamento.
Não te chames mais, adolescente
comendo uvas negras.
Abres a camisa em que escutas todas as mãos do vento.
E vês atrás de ti as máquinas resolutas
de fabricar as formas rápidas,
e convulsas, do esquecimento.
Isto no ar há-de ficar como frio limpo.
O meu nome parou diante
do instante mortal que o guardara.
Evapora-se a roupa, mas não sinto.
a combustão interior do tempo;
uma maçã cortada, uma pomba de éter:
o pensamento.
Não te chames mais, adolescente
comendo uvas negras.
Abres a camisa em que escutas todas as mãos do vento.
E vês atrás de ti as máquinas resolutas
de fabricar as formas rápidas,
e convulsas, do esquecimento.
Isto no ar há-de ficar como frio limpo.
O meu nome parou diante
do instante mortal que o guardara.
Evapora-se a roupa, mas não sinto.
Herberto Helder. Ou o
poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006, p.247.
sexta-feira, 20 de setembro de 2013
no limite da tensão do dizer
Por baixo das palavras, as linhas e os silêncios de
uma vida. Na impossibilidade de ser invisível, o visível das palavras, palavras
que querem proteger.
quinta-feira, 19 de setembro de 2013
Ludwig Uhland
A COROA SUBMERSA
No alto daquele monte
Há uma casa pequenina,
Panorama deslumbrante
Da porta se descortina;
Livre e justo lavrador
Lá mora, que ao fim do dia
Cânticos ergue ao Senhor
E o gume da foice afia.
Há uma casa pequenina,
Panorama deslumbrante
Da porta se descortina;
Livre e justo lavrador
Lá mora, que ao fim do dia
Cânticos ergue ao Senhor
E o gume da foice afia.
Embaixo um pântano existe
Sombrio, onde jaz no fundo
Coroa, em que já se viram
A glória e o poder do mundo;
Carbúnculos e safiras
Lá estão à noite a brilhar;
Ali ela vive há séculos,
Ninguém ainda foi a buscar.
Coroa, em que já se viram
A glória e o poder do mundo;
Carbúnculos e safiras
Lá estão à noite a brilhar;
Ali ela vive há séculos,
Ninguém ainda foi a buscar.
Cinco
séculos de poesia. Org. e trad. Alexei Bueno. Rio de
Janeiro: Record, 2013, p.35.
quarta-feira, 18 de setembro de 2013
terça-feira, 17 de setembro de 2013
domingo, 15 de setembro de 2013
sábado, 14 de setembro de 2013
Fernando Pessoa: "Ah, sempre no curso leve do tempo pesado / A mesma forma de viver!"
Ah,
sempre no curso leve do tempo pesado
A mesma forma de viver!
O mesmo modo inútil de ser enganado
Por crer ou por descrer!
Sempre, na fuga ligeira da hora que morre,
A mesma desilusão
Do mesmo olhar lançado do alto da torre
Sobre o plaino vão!
Saudade, ‘sperança — muda o nome, fica
Só à alma vã
Na pobreza de hoje a consciência de ser rica
Ontem ou amanhã.
Sempre, sempre, no lapso indeciso e constante
Do tempo sem fim
O mesmo momento voltando improfícuo e distante
Do que quero em mim!
Sempre, ou no dia ou na noite, sempre — seja
Diverso — o mesmo olhar de desilusão
Lançado do alto da torre da ruína da igreja
Sobre o plaino vão!
A mesma forma de viver!
O mesmo modo inútil de ser enganado
Por crer ou por descrer!
Sempre, na fuga ligeira da hora que morre,
A mesma desilusão
Do mesmo olhar lançado do alto da torre
Sobre o plaino vão!
Saudade, ‘sperança — muda o nome, fica
Só à alma vã
Na pobreza de hoje a consciência de ser rica
Ontem ou amanhã.
Sempre, sempre, no lapso indeciso e constante
Do tempo sem fim
O mesmo momento voltando improfícuo e distante
Do que quero em mim!
Sempre, ou no dia ou na noite, sempre — seja
Diverso — o mesmo olhar de desilusão
Lançado do alto da torre da ruína da igreja
Sobre o plaino vão!
Fernando
Pessoa. Poesia 1918-1930. São Paulo, Companhia
das Letras, 2007, p.161.
o que detesto quando digo “eu detesto a Rita Lee”
Naturalmente o que a Rita Lee representa (para mim):
uma musiquinha fácil, de supermercado, grudenta; a postura pseudorrebelde; a
voz chata dela; o adocicado viscoso de letra e melodia; a autocomplacência
burguesa de um gosto musical duvidoso; os sorrisos de comercial de margarina...
É preciso, acima de tudo, poder detestar, ter o direito de detestar — algo,
alguém, alguma coisa —, porque não há como ficar indiferente às coisas detestáveis.
fé
Costuma acontecer de manhã, quando já estou no ônibus
indo para o trabalho. Surpreendo-me rezando o pai-nosso, que às vezes se
prolonga numa ave-maria. É então que acontece a quebra. Não sendo mais um
gesto rotineiro, quando começo a rezar suspendo o movimento, às vezes junto com
a oração, e surpreendo em mim, diferentemente da fé, uma espécie de atavismo,
memória do tempo em que rezar era inseparável da vida — e com isso se diz tudo.
Que esse tempo era bom não há a menor dúvida. É sempre melhor ter fé do que não
tê-la. Então agora tratar-se-ia de uma necessidade da fé? Quase um paradoxo
isso, necessidade da fé, já que a fé não admite questão, e quem questiona não
consegue simplesmente manter a fé, aquela que nos mantém unidos a uma crença ou
religião. Mas não quero aqui começar a raciocinar por hipóteses, nem mesmo
tentar racionalizar o meu gesto rotineiro. Ele tem força e dinâmica próprias,
impõe-se sobre mim, memória de um tempo em que rezar era tão inquestionável
quanto Deus.
terça-feira, 10 de setembro de 2013
vício
Os médicos, ao longo dos anos, foram me cortando
vários pequenos prazeres do paladar, quando não fui eu mesma que me adiantei. Cada
um tinha sua explicação — a ATM (disfunção da articulação temporomandibular), o
fígado, o colesterol, por fim o labirinto. Saíram da mesa, mais ou menos nessa
ordem, o café, a cerveja, o vinho, o chocolate, o capuccino, o licor... Substituí o chocolate pela canela, no leite, e ficou saboroso. Mas é pouco para tantos
sabores que foram subtraídos. Então eu reabilitei o café, expulso há pelo menos
vinte anos, porque se trata de poder ter algum vício, e o fiz em grande estilo,
porque, já que é um vício, que seja um vício decente.
domingo, 8 de setembro de 2013
noite
“Como a noite pode se fazer presente. Feita só de si
mesma, é absoluta, cada espaço é seu, impõe-se com sua mera presença, com a
mesma presença do fantasma que você sabe estar bem na sua frente, mas está por
todo lado, inclusive às suas costas, e caso se refugie num pequeno foco de luz
ficará prisioneiro, porque ao redor, como num mar que circunda seu pequeno
farol, está a insuperável presença da noite.” (Antonio Tabucchi. O tempo envelhece depressa.Trad. Nilson
Moulin. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p.38-39).
sábado, 7 de setembro de 2013
deserção suave
Generalizar sobre o ser humano, elaborando abstrações,
não me interessa ou diz respeito. Precisei de uma semana para apreender a
inversão dos parâmetros contemporâneos que se opera em “A Pele que Habito”, um
Almodóvar trágico. De mim sei o que posso saber hoje, e o que posso saber a
cada instância da linha descontínua da existência parece sofrer das
irregularidades do terreno. O que posso saber de mim hoje mostra (a mim) alguém
diferente de quem já me supus ou acreditei em outras paragens, ainda que
aparentemente sob a mesma pele. O que mais me espanta é como algumas pessoas —
e aqui traio a intenção de não generalização — conseguem estar sempre iguais, operação
que parece demandar um esforço admirável de acomodação. Vejo a pele que habito
envelhecendo aos poucos, enquanto o ser que espreita sob ela... é... é o que o
cotidiano permite, o que as energias de hoje permitem. Eu preciso agradecer aos
amigos, os poucos que o abraço de hoje consegue abrigar, por não desistirem de
mim, apesar do (tão) pouco que tenho conseguido fazer ou oferecer. E preciso também
reconhecer que tenho me obrigado a estar mais presente. Nenhum clichê de
amizade, apenas uma deserção suave dos lugares comuns.
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