Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 19 de julho de 2013

Mad Max


Um colega da filosofia, outro, falava da intenção de exibir Mad Max como ilustração da tese de Hobbes sobre o estado de natureza, creio que o terceiro filme da sequência. Resolvi rever a trilogia, e para minha surpresa achei o terceiro filme, talvez o que mais prometesse, inclusive pela atuação conjunta de Tina Turner, o mais fraco — o correto seria dizer irregular. Mas o fato é que o estado de natureza está lá, progressivamente se instaurando à medida que a violência avança sobre a vida das personagens. O primeiro filme, futurista, é convencional, à moda do herói romântico justiceiro, e mostra a gênese da personagem, que vai aparecer com um etos diferente na sequência da trilogia. Esta, ao adotar uma perspectiva pós-apocalipse, torna possível observar, sobre as pessoas, o efeito do retorno ao estado de natureza. A sombra do herói (Mel Gibson) não desaparece, mas as relações são apenas e unicamente a guerra contínua pela sobrevivência — individual ou em pequenos grupos — sempre baseados na dominação e na violência. A exceção é a pequena comunidade edênica que surge no terceiro filme, sem dúvida seu ponto fraco, fraquíssimo, porque não é um contraponto convincente ao inferno de Batertown, governado por Tina Turner, parecendo antes os eternos meninos da terra do nunca. No conjunto da trilogia, o herói torna-se anti-herói, nômade, errante, solitário, e a moeda de troca para a sobrevivência, de todos, torna-se a própria troca em si — o que cada um tem a oferecer em troca da vida, no limite a própria vida. 

música para os próximos dias

qual marcador?

Tenho marcadores aparentemente inúteis, vazios, ocos de sentido. Às vezes vem-me o ímpeto de dar uma arrumada na casa, varrer o entulho comunicativo. Mas logo em seguida já estou pensando em outra coisa, esqueço o furor higiênico, para voltar a ele quando vou postar alguma coisa e tenho dificuldade de me lembrar, num lance rápido, dos tais marcadores inúteis. Alguns certamente podem estar sobrando, englobando outros (como na enciclopédia chinesa de Borges), mas qualquer tentativa de ordenar, classificar, trai um esforço racional que, em si, é apenas uma das faces que reconheço em mim, forte, sem dúvida, esforçada o suficiente para dar sentido a imagens disparatadas dos sonhos, quem sabe prevalecendo sobre as demais. Um colega de filosofia me chamou de racionalista. Perguntei-lhe então, de modo até inocente, como quem pede esclarecimentos a alguém que sabe mais numa dada matéria, o que é um racionalista. Ele devolveu-me a pergunta, invertendo de forma irônica a situação.

voz

Quem se deslocou foi a noção de centro. Qualquer lugar pode ser um lugar de enunciação. Se vai efetivamente sê-lo é outra coisa.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

o papa a caminho

Dois filmes envolvendo a figura do papa, mas com perspectivas diferentes, talvez pudessem aplacar — ou quem sabe nublar de vez — a ansiedade que deve estar tomando conta das autoridades do Rio de Janeiro quanto à visita do Sumo Pontífice ao Brasil na próxima semana, mais especificamente à cidade maravilhosa, em face dos últimos acontecimentos. Um deles é Habemus Papam (2011), do consagrado Nanni Moretti, que com seu humor característico tenta humanizar o Vaticano, mediante pequenos lances dramáticos e potencialmente cômicos do cotidiano. A ideia de um papa que surta quando entrevê a efetiva responsabilidade que tem pela frente — e o próprio desfecho do filme — dão a dimensão da possível incompatibilidade entre estar à frente do comando da Igreja e conhecer efetivamente os dramas e angústias de seus fiéis, talvez nem mais tão fiéis assim. E é essa incompatibilidade, ou distância, que é explorada na comédia dramática O Banheiro do Papa (2007), uma coprodução Uruguai-Brasil-França. O caráter teatral, de encenação do exercício do papado, que Habemus Papam sugere, fica evidente na distância que o então papa João Paulo II mantém da população de Melo, pequena cidade da fronteira Brasil-Uruguai, que se preparou de todas as formas para recebê-lo, não por motivos religiosos, mas por ter visto na visita do Sumo Pontífice uma oportunidade de ganhar dinheiro com os brasileiros que acorreriam ao local, e que teriam, entre outras, a necessidade de se alimentar, por exemplo. É então que o protagonista tem a ideia de construir o banheiro — não para o papa, mas para aqueles que iriam vê-lo. O papa chega, acena, celebra sua missa e vai embora. Os brasileiros não aparecem. A proporção que tudo toma acentua o contraste entre as expectativas do lugarejo pobre, bastante pobre, e o caráter de encenação da visita do papa —  a mudança esperada não veio. E se os fiéis que o filme de Moretti encena têm seu quê de sofisticação, aqueles de Melo são fiéis às necessidades mais básicas de sobrevivência. Daí, talvez, a ideia engenhosa do protagonista, na ausência do dinheiro — e de um divã. 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

a marvada pinga (Inezita Barroso)

young americans (david bowie)

agente da passiva

Reportagem da revista Época (versão impressa) da semana passada anuncia que “Somos todos vigiados” e, logo de saída, convida um engenheiro especialista no assunto para dizer que “A única saída, neste momento, seria parar de usar a internet.” O fato de sermos vigiados não é nenhuma novidade. Na versão impressa, evitou-se o agente da passiva, mas não na digital. O agente da passiva do momento, digo, o espião, é o governo americano, mas eu, por exemplo, já fui vigiada por meus pais, pela Igreja, pela escola, depois pela sociedade, pelos amigos, e, numa etapa seguinte, pelo que vou chamar aqui de “ambiente de trabalho”. Estou casca e fruta prontinha para ser espionada pelo Google. Porque o aprendizado daqueles mecanismos foi tão intenso e eficaz (família, escola, religião, sociedade...) que o espião nem mais se faz necessário: está em mim. E eu já tenho o contra-aprendizado: conheço-o melhor do que ele a mim.

Fernando Pessoa e os versos que valem por poemas inteiros

"Os que mais me conhecem ignoram-me de todo." (aqui)

terça-feira, 16 de julho de 2013

a difícil coragem

Tanto tempo não me arrisco
Nas palavras,
Exceto as burocráticas
— Brutocráticas:
Que gastam por fora.
Essas outras, gratuitas,
Tão minhas
Abrem clareiras por dentro.

Fernando Pessoa: o cansaço e o perdão

Tenho dó das estrelas,
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo…
Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas
Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir…

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão —
Qualquer coisa assim
Como um perdão?

Fernando Pessoa. Poesia 1918-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.323-324.

rima antiga

céu pedrento
chuva e vento

domingo, 14 de julho de 2013

a descoberta da vida

Lia (o verbo reler, no caso de Clarice, não se aplica), antes de dormir, a crônica “A descoberta do mundo”, inserta em uma coletânea do gênero, quando, ao chegar neste trecho, voltei e voltei mais uma vez: “Ou será que eu adivinhava mas turvava minha possibilidade de lucidez para poder, sem me escandalizar comigo mesmo, continuar em inocência a me enfeitar para os meninos? (...) Seria minha ignorância um modo sonso e inconsciente de me manter ingênua para poder continuar, sem culpa, a pensar nos meninos?” Foi então que, um pouco nebulosamente, foi-se me revelando um dado, talvez o que faltava, de um enigma de minha história pessoal — não digo “o enigma” porque seria subestimar a vida. Eu entendi, eu encontrei a peça que faltava, não de maneira clara e lógica e cristalina, mas como essas coisas conseguem se dar ao nosso entendimento. E então jorraram imagens durante a noite, que confirmaram minha cegueira. Talvez então isso que Clarice disse possa ter algum sentido para mim: “Porque eu sempre soube de coisas que nem eu mesma sei que sei.” Clarice Lispector é única. E eu não sei se alguma coisa está melhor hoje pelo fato dessas coisas se terem dado, mas entender junto com Clarice Lispector é conhecer sem se brutalizar.