Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 13 de junho de 2013

Emily Dickinson

Um Vão na Pedra Tumular
Faz do feroz Lugar
Um Lar —


A Dimple in the Tomb
Makes that ferocious Room
A Home —

DICKINSON, Emily. Não sou ninguém: poemas. Trad. Augusto de Campos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p.106-107.

domingo, 9 de junho de 2013

a arte num conto de Cortázar

“Simulacros”, conto de Histórias de cronópios e de famas (Julio Cortázar. Trad. Gloria Rodríguez. 12.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.21-24), coloca para o leitor o desafio de pensar o papel e o lugar da obra de arte. A estranha família dedica-se a construir um patíbulo no jardim de sua casa, sem precisar o fim ou as motivações de fazê-lo:

“Somos uma família estranha. Neste país onde as coisas se fazem por obrigação ou fanfarronada, gostamos de ocupações livres, das tarefas sem importância, dos simulacros que de nada adiantam. Temos um defeito: a falta de originalidade. Quase tudo o que resolvemos fazer foi inspirado — digamos francamente, copiado — de modelos célebres. Se contribuímos com alguma novidade é sempre inevitável: os anacronismos ou as surpresas, os escândalos. Meu tio mais velho diz que nós somos como as cópias de papel carbono, idênticas ao original, a não ser que de outra cor, outro papel, outra finalidade. [...] Fazemos coisas, mas contar é difícil porque falta o mais importante, a ansiedade e a expectativa de estar fazendo coisas, as surpresas tão mais importantes que os resultados, os fracassos em que toda família cai no chão feito um castelo de cartas e durante dias e dias não se escuta mais do que lamentações e gargalhadas. Contar o que fazemos é apenas uma forma de preencher os vazios inevitáveis, porque às vezes estamos pobres ou presos ou doentes, às vezes morre alguém ou (custa dizê-lo) alguém trai, renuncia, ou entra para a Direção do Imposto de Renda. Mas disto não se deve deduzir que vamos mal ou que somos melancólicos. Moramos no bairro de Pacífico e fazemos as coisas toda vez que podemos. Somos muitos a ter ideias e vontade de levá-las à prática. Por exemplo o patíbulo, até hoje ninguém chegou a acordo sobre a origem da ideia [...].” (p.21)

O estranho patíbulo vai se fazendo, erguendo, ganhando forma, assim como ganha forma e proporção o escândalo ao redor dele, da família que o constrói, do jardim onde está sendo construído: “A essa altura dos acontecimentos as pessoas da rua não podiam deixar de perceber o que estávamos fazendo, e um coro de protestos e ameaças nos estimulou agradavelmente a encerrar a jornada com a montagem da roda. [...] A polícia chegou no momento em que a família, reunida na plataforma, comentava favoravelmente o bom aspecto do patíbulo.”

A terceira irmã — a mesma que se comparava ao rouxinol mecânico de Andersen e cujo romantismo dava náuseas no narrador — era a única afastada do grupo no momento da chegada da polícia, e a ela “coube dialogar pessoalmente com o subcomissário; não foi difícil convencê-lo — prossegue o narrador — de que estávamos trabalhando dentro de nossa propriedade, numa obra a que só o uso poderia conferir um caráter inconstitucional, e que os comentários da vizinhança eram produto do ódio e fruto da inveja.” (p.24) Deslocado de seu uso e contexto habitual, nada impede que uma obra seja tomada artisticamente, exceto a cegueira do utilitarismo. Que esta obra seja um patíbulo, ou um simulacro deste, só faz pensar nos mecanismos de morte e vida que animam a produção em série e em larga escala do universo capitalista, avesso ao caráter artesanal e genuinamente coletivo de qualquer coisa, a não ser que essa coisa possa ser institucionalmente chamada de “arte”, e seja colocada num lugar socialmente previsto para alojá-la, a que as pessoas se dirijam para encontrar e apreciar o que chamam de arte, porque assim se convencionou fazê-lo.