Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 1 de julho de 2010

"Alguém Cantando": uma tradução do mistério e beleza da música


Alguém cantando longe daqui
Alguém cantando ao longe, longe
Alguém cantando muito
Alguém cantando bem
Alguém cantando é bom de se ouvir

Alguém cantando alguma canção
A voz de alguém nessa imensidão
A voz de alguém que canta
A voz de um certo alguém
Que canta como que pra ninguém

A voz de alguém, quando vem do coração
De quem mantém toda a pureza da natureza
Onde não há pecado nem perdão
Fonte: site oficial de Caetano Veloso

voluntários da pátria

No conto “São Marcos”, de Guimarães Rosa, há um negro feiticeiro, João Mangolô, descrito pelo narrador como “velho de guerra, voluntário do mato nos tempos do Paraguai”. Trata-se, como se sabe, da guerra do Paraguai, ocorrida na segunda metade do decênio de 1860. As milícias cooptadas para lutar na guerra incluíam grande contingente de escravos – obrigados pelos senhores e/ou aos quais se acenava com a alforria. Essas milícias recebiam o nome de “Voluntários da Pátria”. É o que afirma Boris Fausto: “Calcula-se entre 135 mil e 200 mil o número de brasileiros mobilizados... As tropas foram organizadas com o Exército regular, os batalhões da Guarda Nacional e gente recrutada em sua maioria segundo os velhos métodos de recrutamento forçado que vinha da Colônia. Apesar disso, muitos foram integrados no corpo dos Voluntários da Pátria, como se tivessem se apresentado para combater por vontade própria. Senhores de escravos cederam cativos para lutar como soldados. Uma lei de 1866 concedeu liberdade aos ‘escravos da nação que servissem ao Exército’. A lei se referia aos africanos entrados ilegalmente no país, após a extinção do tráfico, que haviam sido apreendidos e se encontravam sob a guarda do governo imperial.” (FAUSTO, Boris. História do Brasil. 9. ed. São Paulo: Edusp; Fundação para o Desenvolvimento da Educação, 2001, p. 213-214).

em busca da terra do nunca

As fortes imagens divulgadas pela mídia mostrando a devastação provocada pela chuva no Nordeste (aqui) fazem pensar que a pergunta "que país é este?" já não faz mais sentido, pois simplesmente o país tornou-se incapaz de se pensar, e portanto de respondê-la. Na mesma semana em que essa tragédia coletiva aconteceu, um político como Paulo Maluf veio a público dizer que sua ficha é a mais limpa do Brasil, afirmação cujo notório teor de desrespeito aos habitantes do país só passou batido porque estamos em pleno mundial de futebol. Quer dizer, ele fala assim porque confia na progressiva imbecilização coletiva, que faz com que ladrões e corruptos como ele continuem circulando livremente por aí, inclusive com o direito de se elegerem a um mandato político. Quem me representa politicamente? Em quem estou votando a cada eleição? Cargos políticos são de longo prazo, pois em geral os mandatários tendem a se perpetuar neles, fazendo da política uma estranha profissão, cujas manhas se aprendem na prática do ofício. E já que o assunto é futebol, um slogan recente, afixado num carro: "Sou brasileiro. Sou campeão". De quê?

explosão Rio

"Deve ter sido alguma coisa causada por algum equipamento nosso ou pode ter sido alguma outra coisa também", afirma o superintendente de comunicação da Light, Oscar Guerra. (Fonte: Jornal da Globo). Na tentativa de explicar a explosão de um bueiro, ocorrida ontem, numa avenida movimentada de Copacabana ferindo gravemente um casal de turistas americanos (acidente é termo que não cabe aqui), o assessor da Light se esbalda em imprecisões: alguma coisa deve ter acontecido, mas pode ter sido alguma outra coisa também... Traduzindo: pode ter sido qualquer coisa, o que previamente é uma forma de tentar dirimir responsabilidades e jogar a COISA na conta do acidente. Anda mal a imagem do Rio e suas autoridades. O metrô tornou-se um meio de transporte falho, ineficiente, desconfortável e caótico. Não obstante, dentro dos carros há propagandas falando em número de usuários diários, que representariam uma preferência. Usar o metrô atualmente não é sinônimo de preferência, mas de falta de opção. Parece que calçadas e faixas de pedestres  também não constituem mais opções viáveis ou seguras. O absurdo da situação salta aos olhos, mas parece não haver coragem ou força suficiente para exigir uma nova postura das autoridades. Alguma coisa muito estranha está acontecendo (ou deixando de acontecer) nesta cidade.

desenredo

Querendo ou não, o nome nos diz. Em torno do nome, vai-se criando uma espécie de nebulosa, em que gravitam apelidos, sensações, fotografias, retratos mentais, flagrantes da memória e uma movente identidade. Na literatura não poderia ser diferente. Uma das personagens mais famosas de Joyce tem um nome belíssimo, Anna Livia Plurabelle. Apaixonei-me pelo prenome, tranquilamente o aceitaria como meu. E, conforme já foi comentado pela crítica, a publicação, pelos irmãos Campos, do Panorama de Finnegans Wake teria influenciado a fatura de Tutaméia, de Guimarães Rosa, o que se faz notar no conto "Desenredo". A personagem feminina domina a trama, chamando-se Livíria, Rivília ou Irvília, conforme diz o narrador aos seus ouvintes. Nos jogos linguístico aparecem, de imediato, LíviaRiver Irlanda, além de outras possibilidades — lírio, vil, rivalidade e, por onomástica, Virília, nome que fica subentendido, com sua conotação tanto de sexualidade quando de aspecto vil, maldade, que a mulher traria associado a isso, o que remete à Eva. Mas, como se trata de um "desenredo", Eva, aqui, é finalmente perdoada. Não deixa de aparecer como Eva, portanto como culpada — Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. (João Guimarães Rosa. Tutaméia: terceiras estórias. 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.72). Mas sua culpa é redimida. Haverá outro jeito de desenredar essa história?